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Supremo Tribunal Federal decide que Congresso deve regulamentar licença-paternidade até 2025
Em acórdão publicado em 2 de abril de 2024, o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou a tese de que existe omissão inconstitucional relativamente à edição da lei regulamentadora da licença-paternidade, prevista no art. 7º, inciso XIX, da Constituição Federal, estabelecendo o prazo de 18 meses para que o Congresso Nacional saneie referida omissão, contados da publicação da ata de julgamento, que ocorreu em 8 de janeiro de 2024. Não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, o acórdão fixou que caberá ao Tribunal Supremo determinar o período da licença paternidade.
A decisão foi proferida no julgamento da Ação Direta De Inconstitucionalidade Por Omissão (ADO) nº 20, proposta pela Confederação Nacional Dos Trabalhadores Na Saúde – CNTS, sob a Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso e Relatoria do Ministro Marco Aurélio.
No caso em referência, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão postulou a regulamentação da licença-paternidade, nos termos do art. 7º, inciso XIX, da CF/88, sob o fundamento da mora legislativa e proteção deficiente da legislação existente.
A licença-paternidade, criada em 1988 pelo referido dispositivo, é um direito constitucionalmente garantido ao trabalhador de se ausentar do trabalho percebendo remuneração integral, ou seja, sem qualquer desconto no salário, após o nascimento de filho. Dispõe o supramencionado dispositivo que:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
[…]
XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei;
Anteriormente à promulgação da CF de 1988, a licença-paternidade era um direito inexistente na legislação brasileira, tanto no plano constitucional, quanto no infraconstitucional. O art. 473, inciso III, da CLT previa somente um dia de ausência ao pai trabalhador por ocasião do nascimento do filho, no decorrer da primeira semana.
Juntamente com o art. 7º, inciso XIX, a CF de 1988 trouxe o art. 10, §1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que passou a dispor:
- 1º Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias.
Posteriormente, com a nova redação dada pela Lei nº 14.457, de 2022, o art. 473, inciso III, da CLT foi alterado, passando a constar que o empregado poderá deixar de comparecer ao serviço, sem prejuízo do salário, por 5 (cinco) dias consecutivos, em caso de nascimento de filho, estendendo a aplicação da lei também para os casos de adoção ou de guarda compartilhada.
Ainda, com o advento da Lei nº 13.257, de 2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, o art. 38, inciso II, da referida norma trouxe a previsão de ampliação do período da licença-paternidade por 15 (quinze) dias além dos 5 (cinco) dias estabelecidos no § 1º do art. 10 do ADCT, totalizando 20 dias de licença.
Trata-se, porém, de exceção à regra, que deve observar certos requisitos para a concessão desse direito por período estendido ao trabalhador. Primeiramente, a empresa para a qual o empregado labora deve estar cadastrada no Programa Empresa Cidadã1, programa governamental criado em 2008 com o objetivo de estender o período de licença-maternidade de 4 (quatro) para 6 (seis) meses, bem como o da licença-paternidade de 5 (cinco) para 20 (vinte) dias, por meio de adesão voluntária de empresas optantes pela tributação no regime do lucro real, oferecendo, como contrapartida, incentivos fiscais, como dedução de impostos.
Ainda, o empregado da pessoa jurídica incluída no Programa deve solicitar o benefício em até dois dias úteis após o parto, bem como comprovar sua participação “em programa ou atividade de orientação sobre paternidade responsável”. Em complementação, o empregado não deve exercer nenhuma atividade remunerada no período da licença-paternidade.
Todavia, acerca do quanto previsto no art. 7º, inciso XIX, da CF, o direito à licença-paternidade permanece, desde 1988 e até o presente momento, sem qualquer regulamentação.
A questão posta em discussão na referida ADO consistiu em apurar a alegada lacuna normativa, diante da previsão do art. 10, §1º, do ADCT, que garante o prazo de cinco dias de licença-paternidade “até que a lei venha a disciplinar o disposto no artigo 7º, XIX, da Constituição”, tendo prevalecido o entendimento de que a omissão estaria, sim, caracterizada.
Em seu voto, o relator originário, Min. Marco Aurélio, que restou vencido, dispôs que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão pressupõe lacuna normativa e, considerando não haver lacuna ante a disposição constitucional transitória, julgou improcedente o pedido formalizado.
Todavia, o Relator para o acórdão, Min. Edson Fachin, cujo voto restou vencedor, discorreu acerca do direito fundamental social à licença-paternidade e sua conexão com o direito fundamental à igualdade entre homens e mulheres, bem como sobre as mudanças sociais verificadas nas últimas décadas:
O direito fundamental social à licença-paternidade apresenta-se como direito fundamental essencial para a concretização não apenas das garantias institucionais da família (art. 226 da CRFB) e infância (art. 6° e 203 da CRFB), mas principalmente do direito fundamental à igualdade entre homens e mulheres (art. 5, I, da CRFB).
Com efeito, com a promulgação da Constituição de 1988, a família ganhou nova roupagem, acompanhando um caminhar da sociedade, que paulatinamente deixa de se centrar numa visão de família patriarcal e passa a admitir que os vínculos familiares centram-se no afeto das relações entre as pessoas.
[…] Nessa perspectiva, a Constituição consagrou, em seus artigos 226 e 227, essa nova significação da família, centrada no afeto como valor preponderante, inclusive no que tange ao reconhecimento e estabelecimento da paternidade.
Esse reconhecimento, contudo, não se deu sem resistência e controvérsia, como demonstram os debates constituintes que levaram à incorporação do direito à licença-paternidade no rol dos direitos fundamentais sociais. O tema somente foi incorporado ao texto constitucional de 1988 pela força persuasiva do deputado Alceni Guerra, que apresentou emenda, já na fase do Plenário da Assembleia Nacional Constituinte, conseguindo reverter deliberações contrárias das fases anteriores. […] A atuação do deputado Alceni Guerra (PFL-PR) e seu discurso carregado de emoção foram considerados essenciais para a aprovação da emenda que reconheceu a todos os pais brasileiros o direito à licença-paternidade, o que demonstra a importância de homens também se comprometerem e se engajarem nas pautas que, muitas vezes, de forma errônea e preconceituosa, são consideradas apenas das mulheres.
Não se ignora que a pressão das mulheres tem sido de essencial importância para levar o tema da igualdade de gênero a emergir na agenda de políticas públicas. O motivo para isso é evidente: uma vez que são as mulheres elas mesmas as pessoas mais impactadas pelo padrão de desigualdade, cabe a elas o pedido de ações concretas e reformas para alcançar maior patamar de igualdade. No entanto, não é possível falar em igualdade sem apoio e envolvimento significativo de todos na construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, como preconiza o texto constitucional.
Destacou o Min. Edson Fachin que, já em 1988, o discurso que levou à aprovação da licença-paternidade fora calcado na necessidade de o pai amparar a mãe em momento de fragilidade causada pelo parto.
Ainda, dispôs que a experiência internacional revela que muitos países avançam para a adoção de uma licença parental, ou seja, “um período remunerado em que o casal, ou o pai, ou a mãe, ou seja, os responsáveis pelos cuidados com a criança, tenham liberdade de determinar quem se dedica ao filho com maior intensidade em cada momento”.
O Ministro destacou, também, em seu voto, o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, que leva à importância do incremento de políticas públicas relacionadas ao cuidado com os filhos, “as quais possam contribuir para a equidade de gênero, para o suporte da criança, para a saúde mental de pais e mães, bem como para o planejamento familiar e para a diminuição do impacto do nascimento de um filho na carreira da mulher”. Destacou o Min. Edson Fachin que:
Nesse sentido, o Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero monita [sic] as políticas de licença parental na União Europeia e verifica que estão em fluxo constante, com os países membro trabalhando em desenhos de políticas públicas que não apenas oferecem melhor equilíbrio entre gêneros na fruição da licença, bem como melhor equilíbrio entre trabalho e vida pessoal de todos os pais e mães que trabalham, como também são profícuos para índices de fertilidade e de bem estar das crianças.
Assim, considerando como primeira premissa da discussão o reconhecimento da seriedade e da importância da proteção à família e à infância como uma responsabilidade conjunta de homens e mulheres, dispôs o Relator para o acórdão que “os direitos fundamentais sociais à licença-maternidade e à licença-paternidade não podem ser considerados como benefícios da mãe ou do pai, porque, em sua essência, são direitos de toda a comunidade social”, entendendo que esse fato impõe que os direitos fundamentais sociais às licenças maternidade e paternidade devem ser equiparáveis.
O voto destaca, ainda, como segunda premissa, a necessidade de alteração dos padrões comportamentais de homens e mulheres em relação à distribuição do trabalho, ponderando que “as experiências comparadas demonstram que os avanços sociais e econômicos são mais igualitários e sustentáveis quando há um compartilhamento das licenças maternidade e paternidade”, conforme reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que sustentou o equilíbrio entre trabalho e responsabilidades familiares na Convenção n. 156/1981 da OIT e na Recomendação 165/191.
Acerca do mercado de trabalho, pontuou o Ministro Edson Fachin que não é possível ignorar a existência de diversos fatores que contribuem para o tratamento desigual entre homens e mulheres, elencando, entre eles:
a vinculação entre o trabalho formal e a proteção conferida pelos sistemas contributivos; os papéis sociais tradicionais desempenhados pelos gêneros na sociedade (homem provedor, mulher cuidadora); a participação menor (embora crescente) da mulher no mercado de trabalho; a remuneração inferior ao trabalho das mulheres, bem como a falta de reconhecimento das tarefas de cuidado, geralmente desempenhada, sem remuneração, por mulheres.
Nesse contexto, dispôs o Min. Edson Fachin que as políticas públicas têm o dever de minorar os impactos desses fatores e a licença-paternidade é um direito que pode impactar de forma relevante.
Destacou, ainda, que “muitos ganhos históricos da igualdade de gênero somente foram possíveis quando homens e mulheres se uniram em direção ao objetivo único e comum de construírem juntos uma sociedade mais igualitária”.
Por fim, como terceira e última premissa, o Min. Relator para o acórdão destacou a necessidade da atuação dos agentes políticos, de forma ativa, no fomento de políticas públicas que possibilitem a concretização dos direitos fundamentais, inclusive os sociais, como a licença-paternidade:
O efeito dirigente dos direitos fundamentais impõe que exista um esforço coletivo por partes dos agentes políticos e públicos, vinculados a todas as funções de poder, no sentido de concretizar e potencializar a eficácia das normas constitucionais, especialmente quando expressamente reconhecidas pelo legislador constituinte originário como direitos fundamentais.
[…] Os legisladores e legisladoras constituintes indicaram, no texto constitucional de 1988, diversos projetos de políticas públicas que deveriam ser materializadas por meio de esforços dos agentes políticos para sua eficácia prospectiva.
Ainda, destacou o Ministro o papel institucional do Supremo Tribunal Federal, como o órgão máximo do Judiciário brasileiro, de servir ao sistema constitucional como guardião da efetiva concretização das normas constitucionais:
É possível, assim, uma atuação do Poder Judiciário que não seja cegamente omissa e nem irresponsavelmente ativista, mas que garanta os direitos fundamentais expressamente postos pelo poder constituinte. Uma compreensão sobre a separação de poderes que se atenha ao tradicional entendimento de que ao Poder Judiciário cabe apenas ser deferente às escolhas do Executivo e do Legislativo demonstra uma limitada concepção de democracia, segundo a qual as escolhas majoritárias dos representantes do povo (gestores e legisladores) são inquestionáveis.
Dessa forma, ponderou o Min. Edson Fachin, no voto vencedor, não ser possível enfrentar a questão pelo argumento da inexistência de omissão inconstitucional pela suficiência do art. 10, §1º, do Ato da Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, tampouco pela existência de legislação infraconstitucional setorial, qual seja, a Lei nº 13.257 de 2016, que regula o tema de forma parcial.
Constatando como evidente a omissão inconstitucional no que se refere à licença-paternidade, assentou que o dever de estabelecer obrigação de regulamentar referido direito fundamental, dirigido ao legislador infraconstitucional pelo legislador constituinte originário, não foi observado:
Passados mais de 35 anos da promulgação da Constituição, não pode ser considerado suficiente o disposto no artigo 10, §1°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Como também não há uma regulação plena pelas leis especiais que cuidam, de forma setorial, do direito à licença-paternidade para algumas categorias profissionais.
Todos os cidadãos brasileiros, indistintamente, devem gozar do direito fundamental à licença-paternidade.
Assim, por meio do referido acórdão, o STF julgou procedente o pedido e, reconhecendo a omissão inconstitucional, declarou a existência de lacuna normativa quanto à regulamentação do art. 7°, XIX, da CRFB e art. 10, §1°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, conferindo o prazo de 18 meses ao Congresso Nacional para sanar a omissão, o que, se não ocorrer, autorizará o STF a deliberar sobre o tema.
Autora: Giovanna Hoff Domingues