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Participação do amicus curiae e sua influência na pluralidade do debate firmador de teses jurídicas
Breve relato histórico da participação do amigo da corte e sua aplicabilidade de acordo com o Código de Processo Civil de 2015
A figura do amicus curiae passou a ganhar importância com a promulgação da Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Isso porque o §2º do art. 7º da Lei n. 9.868/99 dispõe que, o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades. Passou-se a permitir a atuação do amigo da corte viabilizando a democratização e amplitude do debate.
O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao ampliar a atuação do “amigo da corte” para além das ações constitucionais e daquelas previstas na Lei nº 9.868/99. O art. 138 do CPC especificou requisitos para esta atuação, sendo eles: i) relevância da matéria; ii) especificidade do tema; iii) repercussão social da controvérsia e; iv) representatividade adequada. Ainda, de acordo com o art. 138 do CPC, a intervenção do amicus curiae poderá ocorrer de maneira espontânea ou provocada.
A principal tarefa do amicus curiae é colaborar para a qualidade argumentativa, possibilitando uma visão abrangente da matéria de direito discutida, uma vez que a tese a ser aplicada envolverá o interesse da sociedade. O amigo da corte age como “representante” dos sujeitos interessados que não participaram na lide, defendendo os interesses dos quais possui representatividade. Embora seja requisito a necessidade de demonstração da representatividade adequada, conforme enunciado 127 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC)1, “a representatividade adequada exigida do amicus curiae não pressupõe a concordância unânime daqueles a quem representa”.
A vantagem da interveniência do amigo da corte no debate está no enriquecimento técnico que um expert na área traz para a discussão jurídica, através de suporte fático para a matéria de direito discutida, a apresentação de memoriais, documentos, relatórios ou a realização de sustentação oral, tudo isso de maneira informativa, a fim de enriquecer a discussão e a tese a ser firmada.
Nesse sentido, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), em seu enunciado 4602, entendeu que para a formação de precedentes, deverão ser respeitadas as técnicas de ampliação do contraditório para amadurecimento da tese, como a realização de audiências públicas prévias e a participação de amicus curiae, demonstrando a importância da pluralidade ao aproximar as decisões judiciais à realidade de grupos e indivíduos.
A motivação que move os amici curiae é a contribuição para o debate, podendo este institucional, política, econômico, social ou acadêmico. Embora o amigo da corte não apresente interesse jurídico próprio, deverá representar os interesses de seus representados, através dos interesses destacados, considerados como “institucionais”. Conforme Carlos Alberto Mota3:
A participação do amicus curiae e a realização de audiências públicas tem o propósito de qualificar o debate com o aporte de entendimentos técnicos ou científicos, as informações decorrentes dessas intervenções devem ser necessariamente consideradas no momento do julgamento.
Ainda que o amicus curiae tenha surgido como figura imparcial, com o tempo, esta figura vêm abandonando sua neutralidade, passando a objetivar a participação de pessoas, instituições ou órgãos que seriam afetados por uma decisão. Essa movimentação decorreu do common law, onde se desenvolveu a figura dos litigant amici, sendo estes os intervenientes que deixam sua neutralidade para participar de processos em que sua ausência acarretaria grave injustiça. Ou seja, nos países do common law, existe a possibilidade de os terceiros interessados intervirem no processo tanto para fornecer informações de sua expertise, quanto para defender algum interesse institucional de um grupo de pessoas, sendo seus poderes estabelecidos, pelo tribunal, de acordo com o caso.
No ordenamento jurídico brasileiro, a partir do Código de Processo Civil de 2015, a função do amicus curiae deixou de ser colaborativa, se afastando de sujeito imparcial, uma vez que pode contribuir para discussão a qual a solução final exposta na tese pode interessar aos seus representados.
Nesse sentido, se discute a participação do amigo da corte como porta-voz dos direitos dos litigantes, tal como se observa no direito comparado.
Entende Cintia Regina Guedes4, na obra “O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o papel da Defensoria Pública” que, a figura do litigant amici em sua própria forma estaria presente no direito brasileiro uma vez que o artigo 983 do CPC constitui cláusula aberta que permitiria a participação tanto dos que pretendam apenas contribuir, tanto quanto de órgãos ou entidades com interesse na controvérsia.
Essa participação está presente nos julgamentos de Incidente de Resoluções de Demandas Repetitivas, cuja atuação visa assegurar a possibilidade de participação, ainda que por meio da sua representação por um órgão ou entidade, daqueles que têm interesse em influenciar a decisão a favor de uma tese jurídica que repercutirá sobre os seus processos individuais.
Participação do amigo da corte no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
No julgamento de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, o amigo da corte apresenta tratamento especial. Por se tratar de julgamento que ultrapassa o interesse das partes (evidente repercussão social da controvérsia), havendo pessoas, órgãos ou entidades que possam influir na pluralidade do debate, a participação do “amigo da corte” não se tratará de uma faculdade, mas de um dever a fim de legitimar a decisão proferida no IRDR. A relevância de sua participação se mostra cristalina diante do § 3º do artigo 138 que, como exceção ao parágrafo 1º, possibilita a recorribilidade da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em breve síntese, destaca-se que Incidente de Demandas Repetitivas ultrapassa o interesse das partes ao auxiliar a boa Justiça para toda a sociedade presente e futura, sendo que, o Código de Processo Civil, nos seus arts. 976 a 987, teve de disciplinar este moderno braço da justiça de uma forma nunca vista antes no ordenamento Brasileiro o que, evidentemente, traz além de benefícios, desafios.
Entende-se que o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas se destina às situações com multiplicidade de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito, visando evitar decisões diferentes para uma mesma questão. No entanto, o IRDR não tem o objetivo de evitar o ajuizamento de diversas demandas, vez que não é considerado um incidente preventivo, mas repressivo e o IRDR somente será instaurado quando já observada a repetição de processos que coloquem em risco a isonomia e a segurança jurídica.
Conforme inteligência do art. 976 do CPC, o IRDR poderá ser instaurado quando houver efetiva repetição de processos que contenham a mesma questão jurídica, gerando risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Porém, não há uma delimitação de quantos processos de mesma questão jurídica seriam necessários para que houvesse risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, o que gera discussão na doutrina.
Portanto, o instituto visa à formação de uma tese jurídica que deverá ser comum a todos os processos afetados ao incidente e aos processos futuros, constituindo precedente obrigatório.
Por fixar precedente obrigatório, é notória a necessidade de uma ampla publicidade sobre a existência da afetação de processo por IRDR para que, além das partes litigantes, toda sociedade possa contribuir de maneira frutífera para construção do precedente. Ocorre que, os litigantes dos processos sobrestados afetados pelo IRDR não se socorrem do tradicional princípio constitucional do contraditório, o que, para alguns autores, caracteriza inconstitucionalidade do incidente.
Com isso, fica evidente a importância da participação do amicus curiae para que seja firmada tese oriunda do julgamento de um IRDR, uma vez considerando a própria natureza e finalidade do instituto.
Função colaborativa do amicus curiae na prática
Observa-se a atuação dos amigos da corte em diversos momentos processuais, podendo participar do início ao fim de um processo ou somente em pontos controvertidos em que sua participação se faça relevante.
Em análise empírica dos 51 Temas admitidos no Tribunal de Justiça de São Paulo, de acordo com o Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e Ações Coletivas5, confirma-se a intervenção de terceiros na figura de amicus curiae, com a juntada de petições de requerimento de partes, órgãos e entidades demonstrando que deveriam atuar como amigos da corte, alegando conhecimento na matéria de direito que contribuirá na formação da tese.
Ainda assim, embora diversas entidades peticionem requerendo sua intervenção como amigo da corte, não são todos admitidos, mas podendo ser sua atuação admitida como assistente simples ou, ainda, permanecendo cadastrado como interessado.
O ingresso do amicus curiae é previsto para ações de natureza objetiva, sendo excepcional sua admissão no processo subjetivo, não sendo admitida a interveniência quando averiguado que o ingresso se pretende somente para assegurar resultado favorável a uma das partes envolvidas.
A título de exemplo, em agravo interno na petição do recurso especial nº 1.695.653/DF6, a Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga postulou seu ingresso como amigo da corte, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça deixou de admitir por entender que ausentes os requisitos do artigo 138, CPC, na medida em que diante das provas nos autos, o real objetivo da requerente seria atuar na defesa da requerida, ao vincular-se na pretensão de resultado favorável para tanto.
Também pode ocorrer, como no Tema 39, em que o interessado peticiona requerendo seu ingresso como assistente simples. No Tema 39, em que se discutiu sobre adicional por tempo de serviço e a sexta-parte, o Instituto de Previdência do Servidor Municipal (IPSM) alegou que haveria distinção da regra tendo em vista que o Estatuto dos Servidores Municipais de São José dos Campos tratou de forma diferente a matéria em relação à Constituição Estadual, revelando-se descabida qualquer forma de aproximação entre os dois diplomas, sob pena de violação ao princípio federativo, sobretudo em relação ao conceito de “vencimentos integrais” (art. 129, Constituição Estadual). Para tanto, requereu sua participação como assistente simples diante de seu interesse jurídico (art. 119,” caput”, CPC), sob o fundamento da relevância da matéria e risco à isonomia jurídica.
Nessa perspectiva, a participação da OAB como amicus curiae é singular, a depender da matéria envolvida. No STJ, a Ministra Maria Isabel Gallotti, no julgamento do AgRg na PET no AREsp 151.885/PR7, fixou entendimento de que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB somente poderá ser admitido como amigo da corte quando o recurso estiver submetido ao rito dos repetitivos, demonstrando-se que a matéria envolvida não trata somente de direito individual ao recebimento de verba advocatícia, de modo que, sua admissão dependerá da matéria envolvida. Ainda, no Agravo em Recurso Especial 1.297.7798, entendeu a Ministra Nancy Andrighi pela admissão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil como amigo da corte para o julgamento sobre honorários por equidade diante do nítido interesse coletivo no que tange ao aviltamento dos honorários. Em última análise, é possível extrair que a OAB somente poderá intervir na figura de amigo da corte em causas de potencial efeito multiplicador em defesa das prerrogativas dos advogados.
Também pode ocorrer julgamento em que somente parte dos postulantes sejam admitidos como amigos da corte , como ocorreu no Tema 11, o qual discutiu questões de direito relacionadas a reajuste por mudança de faixa etária aos 59 anos, no âmbito de contratos coletivos de plano de saúde empresariais e por adesão celebrados a partir de 01.01.2004 ou adaptados à Resolução n. 63/03, da ANS – Tese fixada pelo C. STJ no REsp n. 1.568.244/RJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, que não vincula os processos que versem sobre planos coletivos. No mencionado tema, a Comissão Especial de Direito à Saúde da OAB/SP, a Unimed do Brasil Confederação Nacional das Cooperativas Médicas, o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor BRASILCON, a Unimed Seguros, a Unimed FESP e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foram admitidos como amicus curiae, enquanto o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas do Ramo Financeiro do Grande ABC foi inadmitido sob o fundamento de que não se vislumbrava conhecimento especializado e representatividade adequada dessa associação.
Diversas entidades se mostram atuantes na figura de amicus curiae, como é o caso da FEBRABAN, sendo admitida sua participação ao demonstrar especialização e adequada representatividade na defesa das instituições bancárias. A FEBRABAN, por se tratar de associação sem fins lucrativos que congrega instituições financeiras bancárias e associações representativas dessas instituições, quando requer a sua admissão, expõe o fato de que a controvérsia discutida em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) se mostra sensível a todas as instituições que operam no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, além de que, as “questões adjacentes” tratadas, influenciam diretamente na prática e defesa jurídicas das instituições financias do Estado.
Embora evidenciado seu interesse institucional no Tema 3, que fixou o entendimento da impossibilidade de ajuizamento de ação de exigir contas por correntista de forma vaga e genérica, a FEBRABAN somente foi admitida como assistente simples e o mesmo ocorreu com os demais peticionantes que postularam a participação como amigo da corte no mencionado tema.
O Banco Central foi admitido como amicus curiae para intervir no Tema 1, trazendo informações importantes para o debate, no caso, sobre o papel do Fundo Garantidor de Crédito, alegando que este não se equipara a instituições financeiras e não há relação de consumo entre ele e os depositantes.
O mesmo ocorrera nos Temas 4, 9, 11, 12, 13, 14, 17, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 40, 42, 45, 49 e 50 em que associações, fundações, sindicatos, pessoas jurídicas de direito público e etc., foram admitidos como amicus curiae em pontos controvertidos diferentes, a fim de garantir a pluralidade do debate, demonstrando assim que a intervenção na forma de amicus curiae é admitida na prática quando o interveniente possa enriquecer o debate em etapas específicas do incidente, não necessitando que haja só um amigo da corte durante todo o incidente, ou que o mesmo participe até a formação da tese.
Conclusão
Após anos da vigência do Código de Processo Civil, a participação do amigo da corte como terceiro interessado ou interveniente apresenta dualidades quando analisado o direito comprado, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro, por vezes, continua a tratar o amicus curiae como terceiro interveniente, sem vislumbrar a importância de uma participação mais ativa, na medida em que o amigo da corte poderá ter como objetivo ver tutelado o direito que está defendendo.
Com isso, é possível verificar neste ponto as dificuldades práticas quando um órgão ou entidade busca sua admissibilidade na participação, seja a fim de influir na aplicação das teses bem como na função de representar sujeitos sobrestados.
No entanto, conforme demonstrado, por diversas vezes nos 51 Temas admitidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo foi possível extrair a colaboração dos amigos da corte. Observa-se que, em 51 dos temas admitidos, em 18 pudemos observar a atuação do amicus curiae.
Demonstrada a função do amicus curiae de trazer informações importantes para a solução da demanda como modalidade de interveniência de terceiros, por ter sido demonstrada a relevância da discussão que exige a participação de partes que possam contribuir além das partes do processo, o amigo da corte deve fornecer subsídios ao órgão jurisdicional a fim de justificar sua participação, exigindo a lei que haja representatividade adequada.
Nesse passo, a doutrina e a jurisprudência ainda vêm tentando inovar, a fim de que o acesso à justiça e o direito do contraditório sejam sempre respeitados na fixação de teses oriundas de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, isso com a efetiva participação, nem que seja indireta, daqueles interessados sobrestados, sendo a figura do amigo da corte primordial para garantir a aplicabilidade do incidente diante do alargamento da discussão que existe com a colaboração do terceiro representante, garantindo, inclusive, o acesso ao contraditório.
Dentre as vantagens da participação do amicus curiae na pluralidade do debate firmador de teses jurídicas expostos nesse artigo, conclui-se que a relevância do instituto ultrapassa a tese aplicada no mundo jurídico ao alcançar esferas da sociedade, possibilitando o alcance da discussão na realidade fática de quem de fato vive a aplicabilidade das leis e decisões, de modo a concretizar diversos princípios constitucionais e processuais abrangidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Embora ainda exista dificuldade na admissibilidade da figura do amigo da corte ao trazer o direito comparado com a liberdade alcançada pelos litigant amici, tem-se como considerável avanço na busca por decisões satisfatórias, a participação de entidades qualificadas no debate firmador de teses.
Autora: Luciana Alfeld Silvestre