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Os quarenta anos da Lei de Ação Civil Pública e os projetos para sua atualização
Em 2025 a Lei de Ação Civil Pública completará 40 (quarenta) anos de sua edição. A Lei nº 7.347, de 24 e julho de 1985, inovou o ordenamento jurídico ao disciplinar a ação civil pública “de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” e entrou em vigor logo na data de sua publicação.
Anteriormente à sua edição, a legislação brasileira contava com alguns instrumentos processuais de maior amplitude em que podemos destacar a Lei de Ação Popular (Lei nº 4.717/1965, com alterações introduzidas pela Lei nº 6.513/1977 e também pelo texto constitucional no art. 5º, LXXIII) que menciona a possibilidade de defesa dos bens de valor econômico, artístico, estético, histórico, turístico, bem como a defesa da moralidade administrativa, do meio ambiente e patrimônio histórico e cultural, ser realizada por qualquer cidadão e não mais apenas o eventual titular do direito subjetivo. Na Lei de Ação Popular, contudo, o legitimado ativo era o cidadão e não trazia, ainda, os legitimados extraordinários que a Lei de Ação Civil Pública nos apresentou.
Foi, sem dúvida, no entanto, com o advento da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85-LACP) que tivemos o grande avanço na seara da defesa dos direitos coletivos lato sensu, uma vez que nessa legislação já encontramos um arcabouço jurídico completo em que se delimitam os legitimados ativos, as matérias passíveis de defesa judicial pela via da ação coletiva, recursos cabíveis, abrangência das decisões, forma de execução e, de forma explícita, então, tínhamos uma legislação própria para a defesa dos chamados direitos transindividuais, que pertencem não apenas a um indivíduo, mas a toda uma coletividade ou grupo.
E os avanços não pararam no plano da legislação ordinária, pois, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, diversos dispositivos asseguraram explicitamente a defesa dos interesses difusos e coletivos bem como a legitimidade extraordinária de instituições como o Ministério Público, tratando também de sindicatos e associações.
A Constituição Federal assegura a defesa dos direitos do consumidor (art. 5º, XXXIII), culturais, de meio ambiente e amplamente os direitos transindividuais e, no plano da defesa desses direitos, tem previsão expressa o art. 5º, XXXV, quando diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito e no art. 129, III, ao disciplinar as funções institucionais do Ministério Público, indica a promoção da ação civil pública. O art. 5º, XXI, também confere às entidades associativas, quando autorizadas, a representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente. A legitimidade ativa dos sindicatos também foi expressamente prevista no art. 8º, III, e, posteriormente, também à Defensoria Pública foi assegurado o dever de promoção dos direitos individuais e coletivos (art. 134).
Posteriormente, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90-CDC), que, além de disciplinar de forma detalhada os mecanismos de direito material envolvendo as relações de consumo, dedicou capítulos relevantes a disciplinar a defesa dos interesses difusos, coletivos e o “novo” direitos individuais homogêneos, trazendo detalhamentos sobre matérias que estavam disciplinadas na Lei de Ação Civil Pública, formando, assim, o microssistema das ações coletivas.
A defesa do consumidor em juízo foi disciplinada pelo CDC sob o viés individual e coletivo buscando ampliar o acesso à justiça e, especificamente no âmbito da tutela coletiva, aperfeiçoou as regras até então trazidas pela LACP e disciplinou no art. 81, I, II, e III, os conceitos de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. No art. 82 disciplina os legitimados ativos e no art. 103 disciplina a coisa julgada a ser formada, além de também tratar, no art. 100, da previsão da indenização eventual de fluid recovery.
Além disso, o CDC introduziu relevantes princípios que, à par de serem aplicados inicialmente à defesa do consumidor, acabou se expandindo, quando não incompatível, para as demais demandas coletivas que seguem pautadas pelos princípios da proteção, da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, da função social do contrato e da reparação integral dos danos, dentre outros.
Todo esse arcabouço legislativo fez com que por Barbosa Moreira [1] destacasse que o Brasil “está mais bem equipado que qualquer outro que eu conheça em matéria de Ações Coletivas” e, de fato, podemos afirmar que nesses quarenta anos de vigência da Lei de Ação Civil Pública, diversos foram os avanços que essa legislação permitiu que acontecessem, concedendo ampla legitimação para diversas entidades de natureza públicas e privadas pudessem defender os interesses difusos, coletivos e, mais recentemente, os individuais homogêneos.
Durante os quarenta anos de vigência a Lei de Ação Civil Pública sofreu algumas alterações, das quais podemos destacar a Lei nº 11.448/2007 que conferiu expressamente legitimidade ativa à Defensoria Pública para também ajuizar demandas coletivas dessa natureza, traduzindo em lei o que a jurisprudência já vinha admitindo ao longo do tempo, ante a relevância institucional da Defensoria Pública e sua inegável relevância institucional e, ainda, a Lei nº 13.004/2014, que acrescentava dentre as finalidades da ação civil pública a proteção do patrimônio público e social.
Foram, contudo, alterações legislativas que não impactaram substancialmente o regime de proteção dos direitos coletivos “lato sensu” e ao longo dos anos, foram surgindo projetos de lei que buscam renovar o sistema de proteção coletiva e que se propõem à elaboração de uma nova lei de ação civil pública.
Dentre os projetos de tramitam na Câmara dos Deputados destacamos o PL nº 1.641/2021[2], que é conhecido nos meios acadêmicos como “Projeto Ada Pellegrini Grinover” e que também é mencionado na justificativa do Projeto como sendo uma homenagem à Professora que muito contribuiu para o estudo e desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil.
O PL nº 1.641/2021 encontra-se apensado ao PL nº 4.441/2020, e aguarda pauta junto à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara, e então, efetivamente, renova e amplia ainda mais o acesso à Justiça na seara coletiva e, segundo consta da exposição de motivos[3], o objetivo dessa renovação seria:
“De um modo geral, almejou-se, com o atual substitutivo, melhor harmonizar as disposições já dedicadas tanto ao processo coletivo, como também à tutela coletiva extrajudicial, por legislações esparsas.
Buscou-se aperfeiçoar e unificar o atual microssistema processual composto fundamentalmente pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor, aplicando-lhe, ainda, algumas das técnicas e procedimentos recentemente previstos pelo Código de Processo Civil, pela Lei de Mediação e por Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).”
De início, no projeto são listados os princípios gerais regentes das tutelas coletivas, confere, no art. 3º, III, conceito mais abrangente para a definição de direitos individuais homogêneos que merece destaque:
“III – direitos individuais homogêneos, assim considerados os direitos individuais que recomendem ou exijam proteção conjunta em razão de características tais como a predominância das questões comuns sobre as particulares, a necessidade de preservar a isonomia e a restituição integral, a facilitação de acesso à prova, a garantia de acesso à justiça, a melhor gestão do serviço judiciário ou a repercussão de cada pretensão individual sobre as demais.”
O projeto de lei amplia a legitimidade ativa, por exemplo, destacando a Ordem dos Advogados do Brasil, não obstante já tendo legitimidade ativa reconhecida pela jurisprudência, como ampla legitimada, também expõe fortemente o viés compositivo mesmo nos litígios coletivos, sendo dedicado um capítulo completo para regulamentar os eventuais acordos a serem firmados na seara coletiva.
O PL nº 1.641/2021, além de conferir ampla legitimidade ativa para atuação das associações agindo como substitutas processuais, distingue de forma expressa o conceito da legitimidade das associações por substituição e as ações por representação, dedicando um capítulo final para definir que em atuando como representante de seus associados, os beneficiários serão desde logo conhecidos, não tendo ampla abrangência, conforme destaca-se da leitura do art. 51 proposto:
“Sem prejuízo da propositura da ação coletiva por substituição processual, proposta nos termos do art. 7º desta lei, as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente, nos termos do art. 5º, inc. XXI, da Constituição da República.
Parágrafo único. A ação por representação é movida pela associação em nome dos seus associados e os beneficiários do título executivo são definidos no processo de conhecimento, considerada a lista apresentada com a peça inicial e a autorização expressa dos associados antes do ajuizamento ou após no caso daqueles que a ela tenham aderido na condição de filiados até o saneamento do processo.”
O art. 18 do PL traz ponto bastante polêmico ao indicar que a mera propositura da ação civil pública interromperia a prescrição das pretensões coletivas e também “individuais baseadas no mesmo conjunto de fatos”, além de genericamente indicar que o prazo para ajuizamento da ação coletiva observar os prazos do Código Civil. O PL também traz previsão específica sobre a produção antecipada de provas a ser realizada pelos legitimados ativos.
Outra mudança substancial proposta pelo PL refere-se ao fato de que a sentença de procedência do pedido, segundo o art. 26, I, do PL nº 1.641/2022, se condenatória, deve ser preferencialmente líquida, ao inverso do que atualmente a legislação dispõe quando diz que as sentenças devem ser genéricas (art. 95 do Código de Defesa do Consumidor).
Ainda sobre a coisa julgada, no PL é proposto que esta se forme, independentemente do desfecho do processo e contando com eficácia “erga omnes” ou “ultra partes” sem limitação territorial.
O PL trata também de eventual conversão de ação individual em ação coletiva desde que esta “… veicule pedido que tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade ou quando se tratar de demandas individuais repetitivas que possam causar ofensa à isonomia ou à segurança jurídica” (art. 50), tema que já se tentou incluir no atual Código de Processo Civil e que não foi avante.
São diversos os temas tratados no PL que pretendem renovar a Lei de Ação Civil Pública, tendo apenas esse texto destacado alguns pontos de atenção e, em vista da relevância do tema, recomenda-se a leitura integral do projeto e também de sua justificativa, sendo de interesse de nossa comunidade jurídica acompanhar o andamento dos projetos de lei que propõem a alteração da Lei de Ação Civil Pública pois a todos impacta.
Autora: Wanessa de Cássia Françolin
[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo, São Paulo, v. 61, jan./mar. 1991. p. 198.
[2] Portal da Câmara dos Deputados, consultado em 24.11.2024.
[3] www.camara.leg.br , consultado em 24.11.2024.