Os limites jurídicos da loteria no Brasil e a recente popularização das empresas de apostas esportivas (“bets”)

25 de fevereiro de 2025

Recentemente, debates envolvendo jogos de azar e sites de aposta esportiva têm repercutido de maneira expressiva na sociedade civil brasileira e gerado questionamentos em torno de sua legalidade, tributação e fiscalização. Enquanto por um lado há uma operação que investiga um esquema criminoso de jogos que são divulgados por influenciadores digitais, por outro foi divulgado que as denominadas “bets” correspondem a 80% dos patrocínios da série A do campeonato brasileiro de futebol, por exemplo, o que evidencia a sua popularidade a nível nacional.

As bets, ou empresas de apostas esportivas, foram permitidas no Brasil a partir da Lei nº 13.756, de 2018, que previu a possibilidade de sua exploração, com a determinação de que houvesse uma regulamentação futura, o que até o momento não ocorreu. Desse modo, por falta de regulamentação específica, a maioria das bets são sediadas no exterior, o que impacta na tributação e dificulta a devida fiscalização das suas atividades.

Enquanto, por um lado, as empresas de apostas esportivas são novidade no Brasil e ainda possuem algumas obscuridades quanto ao seu funcionamento, por outro a loteria tradicional está devidamente regulamentada e faz parte do cotidiano dos brasileiros há muito tempo, principalmente pela sua credibilidade e pela possibilidade de ascensão social imediata que ela pode proporcionar, o que justifica a sua popularidade.

Mas, afinal, qual seria a definição de loteria na legislação brasileira?

De acordo com a Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 1941), loteria “é toda operação que, mediante a distribuição de bilhete, listas, cupões, vales, sinais, símbolos ou meios análogos, faz depender de sorteio a obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza”. Ainda, nos termos do Decreto-lei nº 759, de 1969, a Caixa Econômica Federal é a empresa pública que possui exclusividade na exploração dos serviços da Loteria Federal do Brasil e da Loteria Esportiva Federal.

É a respeito da origem, evolução histórica e principais aspectos jurídicos da loteria que o presente artigo discorrerá.

Evolução histórica e legislativa da loteria

A primeira loteria surgiu possivelmente na China, pois há registros de que por volta do ano 100 AC, durante a dinastia Han, foi lançado o jogo Keno, que funciona de maneira randômica e se assemelha ao bingo. Essa prática, inclusive, teria sido uma fonte de recursos para a construção de Muralha da China.

Muitos anos depois, em meados do século XVIII, as loterias foram se popularizando na América do Norte e Europa, sendo curioso mencionar o fato de que as loterias europeias eram consideradas uma prática pecaminosa e, em razão disso, passaram a destinar parte de seus recursos a obras sociais, o que causou a aprovação dos cristãos.

Há registros de loterias oficiais no Brasil a partir do ano de 1784, ainda no período colonial, que possuíam o escopo de arrecadar recursos para as obras da Casa de Câmara e Cadeia (hoje Museu da Inconfidência) de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto (Minas Gerais). Posteriormente, com a vinda da Corte Portuguesa, no ano de 1808, as loterias se espalharam pelo país em prol de Santas Casas e outras instituições assistenciais e culturais.

A partir da Proclamação da República, foram realizados importantes alterações no regime jurídico das loterias. Embora continuassem a ser exploradas quase que exclusivamente por particulares, a partir de 1896 as loterias passaram a ser fonte de receita para o orçamento público federal.

Em seguida, no ano de 1900, foi editado pelo Presidente o Decreto nº 3.638, que estabeleceu um novo regulamento de loterias. Nesse documento, era facultado aos Estados autorizar o funcionamento de loterias em seus territórios, mas estabelecia que tais loterias seriam regidas por leis federais e fiscalizadas pelo Ministério da Fazenda.

Houve, ainda, outras mudanças relevantes na legislação a respeito do tema, sendo que a partir da aprovação da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 1941, conforme mencionado na introdução desse texto), ocorreu a consolidação da repressão penal aos “jogos de azar” e às loterias que funcionavam de maneira irregular.

Prevê o art. 51 da Lei de Contravenções Penais:

Art. 51. Promover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal:

Pena – prisão simples, de seis meses a dois anos, e multa, de cinco a dez contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis existentes no local.

1º Incorre na mesma pena quem guarda, vende ou expõe à venda, tem sob sua guarda para o fim de venda, introduz ou tenta introduzir na circulação bilhete de loteria não autorizada.

2º Considera-se loteria toda operação que, mediante a distribuição de bilhete, listas, cupões, vales, sinais, símbolos ou meios análogos, faz depender de sorteio a obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza.

3º Não se compreendem na definição do parágrafo anterior os sorteios autorizados na legislação especial.

Já na segunda metade do século XX, com o advento do Decreto-Lei nº 204, de 1967, que foi um marco relevante sobre a matéria, as loterias passaram a ser consideradas um serviço público exclusivo de titularidade da União, não suscetível de concessão. Anos depois foi promulgada a Constituição Federal de 1988, que estabelece em seu art. 22, inciso XX, que “Compete privativamente à União legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios”.

E a jurisprudência do STF se consolidou nesse mesmo sentido, sendo que a redação da Súmula Vinculante nº 2 reforça que “É inconstitucional a lei ou ato normativo Estadual ou Distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”, através do precedente representativo da ADI nº 2.847, de relatoria do Ministro Carlos Velloso.

Dados recentes

É inegável o impacto que as loterias têm na vida dos brasileiros, tanto que uma das tradições de “ano novo” passou a ser apostar na “Mega da Virada”, por exemplo.

Foi noticiado em reportagem do UOL que as Loterias Caixa bateram recorde de repasse ao esporte brasileiro em 2023 graças à arrecadação expressiva da Mega da Virada, que pagou um prêmio recorde de R$ 588 milhões.

No total, foi repassado R$ 1,675 bilhão ao esporte em 2023, um aumento de R$ 1,5 milhão na comparação com o antigo recorde, de 2022, sem levar em conta a inflação.

E apesar dessa expressividade numérica, o esporte não é a área que recebe a maior quantidade de repasses, e sim a previdência social, conforme figura abaixo:

De acordo com dados obtidos em 2022, um terço dos recursos provenientes das apostas lotéricas são destinados à Previdência. Dos R$ 22,3 bilhões arrecadados, a Caixa repassou R$ 10,9 bilhões a beneficiários estabelecidos por lei, sendo a Previdência o principal destinatário, recebendo R$ 3,9 bilhões. Além disso, a arrecadação com imposto de renda sobre as apostas atingiu R$ 1,8 bilhão.

É relevante, também, compartilhar o gráfico abaixo, onde é possível comparar os cenários de 2020 a 2023:

Demonstra-se, portanto, a dimensão e a proporcionalidade dos repasses provenientes de apostas lotéricas no Brasil.

Conclusão

Conforme exposto ao longo desse texto, a loteria existe no mundo há muitos anos e, oficialmente, faz parte da realidade dos brasileiros desde o século XVIII. É evidente, portanto, que a evolução legislativa a respeito do tema foi gradativa e constante.

Espera-se que muito em breve as “bets” ou apostas esportivas também sejam devidamente regulamentadas, pois, assim como a loteria, estão relacionadas, de alguma maneira, à sorte do apostador. E em um país com tanta desigualdade social como o Brasil, a delicadeza do tema é evidente; muitos enxergam nesse cenário a única oportunidade de ascensão social.

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BETS correspondem a 80% de patrocínios na Série A do Brasileiro: levantamento também revela que empresas de bet correspondem a 30% dos patrocínios no futebol mundial. Levantamento também revela que empresas de bet correspondem a 30% dos patrocínios no futebol mundial. 2024. Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/corinthians/bets-correspondem-a-80-de-patrocinios-na-serie-a-do-brasileiro,fbd5bfc6d63f81771dd92ffc427fa7aetcqzynk9.html. Acesso em: 30 maio 2024.

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O que é o ‘jogo do tigrinho’ e por que ele é ilegal no Brasil: número de prejudicados e os ganhos obtidos por influencers levaram a polícia civil do maranhão realizar uma operação que investiga um esquema criminoso em torno do jogo “fortune tiger”. Número de prejudicados e os ganhos obtidos por influencers levaram a Polícia Civil do Maranhão realizar uma operação que investiga um esquema criminoso em torno do jogo “Fortune Tiger”. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/12/17/o-que-e-o-jogo-do-tigrinho-e-por-que-ele-e-ilegal-no-brasil.ghtml. Acesso em: 30 maio 2024.

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