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Os limites jurídicos da loteria no Brasil e a recente popularização das empresas de apostas esportivas (“bets”)
Por Natália Ignan Machado
Recentemente, debates envolvendo jogos de azar e sites de aposta esportiva têm repercutido de maneira expressiva na sociedade civil brasileira e gerado questionamentos em torno de sua legalidade, tributação e fiscalização. Enquanto por um lado há uma operação que investiga um esquema criminoso de jogos que são divulgados por influenciadores digitais, por outro foi divulgado que as denominadas “bets” correspondem a 80% dos patrocínios da série A do campeonato brasileiro de futebol, por exemplo, o que evidencia a sua popularidade a nível nacional.
As bets, ou empresas de apostas esportivas, foram permitidas no Brasil a partir da Lei nº 13.756, de 2018, que previu a possibilidade de sua exploração, com a determinação de que houvesse uma regulamentação futura, o que até o momento não ocorreu. Desse modo, por falta de regulamentação específica, a maioria das bets são sediadas no exterior, o que impacta na tributação e dificulta a devida fiscalização das suas atividades.
Enquanto, por um lado, as empresas de apostas esportivas são novidade no Brasil e ainda possuem algumas obscuridades quanto ao seu funcionamento, por outro a loteria tradicional está devidamente regulamentada e faz parte do cotidiano dos brasileiros há muito tempo, principalmente pela sua credibilidade e pela possibilidade de ascensão social imediata que ela pode proporcionar, o que justifica a sua popularidade.
Mas, afinal, qual seria a definição de loteria na legislação brasileira?
De acordo com a Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 1941), loteria “é toda operação que, mediante a distribuição de bilhete, listas, cupões, vales, sinais, símbolos ou meios análogos, faz depender de sorteio a obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza”. Ainda, nos termos do Decreto-lei nº 759, de 1969, a Caixa Econômica Federal é a empresa pública que possui exclusividade na exploração dos serviços da Loteria Federal do Brasil e da Loteria Esportiva Federal.
É a respeito da origem, evolução histórica e principais aspectos jurídicos da loteria que o presente artigo discorrerá.
Evolução histórica e legislativa da loteria
A primeira loteria surgiu possivelmente na China, pois há registros de que por volta do ano 100 AC, durante a dinastia Han, foi lançado o jogo Keno, que funciona de maneira randômica e se assemelha ao bingo. Essa prática, inclusive, teria sido uma fonte de recursos para a construção de Muralha da China.
Muitos anos depois, em meados do século XVIII, as loterias foram se popularizando na América do Norte e Europa, sendo curioso mencionar o fato de que as loterias europeias eram consideradas uma prática pecaminosa e, em razão disso, passaram a destinar parte de seus recursos a obras sociais, o que causou a aprovação dos cristãos.
Há registros de loterias oficiais no Brasil a partir do ano de 1784, ainda no período colonial, que possuíam o escopo de arrecadar recursos para as obras da Casa de Câmara e Cadeia (hoje Museu da Inconfidência) de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto (Minas Gerais). Posteriormente, com a vinda da Corte Portuguesa, no ano de 1808, as loterias se espalharam pelo país em prol de Santas Casas e outras instituições assistenciais e culturais.
A partir da Proclamação da República, foram realizados importantes alterações no regime jurídico das loterias. Embora continuassem a ser exploradas quase que exclusivamente por particulares, a partir de 1896 as loterias passaram a ser fonte de receita para o orçamento público federal.
Em seguida, no ano de 1900, foi editado pelo Presidente o Decreto nº 3.638, que estabeleceu um novo regulamento de loterias. Nesse documento, era facultado aos Estados autorizar o funcionamento de loterias em seus territórios, mas estabelecia que tais loterias seriam regidas por leis federais e fiscalizadas pelo Ministério da Fazenda.
Houve, ainda, outras mudanças relevantes na legislação a respeito do tema, sendo que a partir da aprovação da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 1941, conforme mencionado na introdução desse texto), ocorreu a consolidação da repressão penal aos “jogos de azar” e às loterias que funcionavam de maneira irregular.
Prevê o art. 51 da Lei de Contravenções Penais:
Art. 51. Promover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal:
Pena – prisão simples, de seis meses a dois anos, e multa, de cinco a dez contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis existentes no local.
- 1º Incorre na mesma pena quem guarda, vende ou expõe à venda, tem sob sua guarda para o fim de venda, introduz ou tenta introduzir na circulação bilhete de loteria não autorizada.
- 2º Considera-se loteria toda operação que, mediante a distribuição de bilhete, listas, cupões, vales, sinais, símbolos ou meios análogos, faz depender de sorteio a obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza.
- 3º Não se compreendem na definição do parágrafo anterior os sorteios autorizados na legislação especial.
Já na segunda metade do século XX, com o advento do Decreto-Lei nº 204, de 1967, que foi um marco relevante sobre a matéria, as loterias passaram a ser consideradas um serviço público exclusivo de titularidade da União, não suscetível de concessão. Anos depois foi promulgada a Constituição Federal de 1988, que estabelece em seu art. 22, inciso XX, que “Compete privativamente à União legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios”.
E a jurisprudência do STF se consolidou nesse mesmo sentido, sendo que a redação da Súmula Vinculante nº 2 reforça que “É inconstitucional a lei ou ato normativo Estadual ou Distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”, através do precedente representativo da ADI nº 2.847, de relatoria do Ministro Carlos Velloso.
Dados recentes
É inegável o impacto que as loterias têm na vida dos brasileiros, tanto que uma das tradições de “ano novo” passou a ser apostar na “Mega da Virada”, por exemplo.
Foi noticiado em reportagem do UOL que as Loterias Caixa bateram recorde de repasse ao esporte brasileiro em 2023 graças à arrecadação expressiva da Mega da Virada, que pagou um prêmio recorde de R$ 588 milhões.
No total, foi repassado R$ 1,675 bilhão ao esporte em 2023, um aumento de R$ 1,5 milhão na comparação com o antigo recorde, de 2022, sem levar em conta a inflação.
E apesar dessa expressividade numérica, o esporte não é a área que recebe a maior quantidade de repasses, e sim a previdência social, conforme figura abaixo:
De acordo com dados obtidos em 2022, um terço dos recursos provenientes das apostas lotéricas são destinados à Previdência. Dos R$ 22,3 bilhões arrecadados, a Caixa repassou R$ 10,9 bilhões a beneficiários estabelecidos por lei, sendo a Previdência o principal destinatário, recebendo R$ 3,9 bilhões. Além disso, a arrecadação com imposto de renda sobre as apostas atingiu R$ 1,8 bilhão.
É relevante, também, compartilhar o gráfico abaixo, onde é possível comparar os cenários de 2020 a 2023:
Demonstra-se, portanto, a dimensão e a proporcionalidade dos repasses provenientes de apostas lotéricas no Brasil.
Conclusão
Conforme exposto ao longo desse texto, a loteria existe no mundo há muitos anos e, oficialmente, faz parte da realidade dos brasileiros desde o século XVIII. É evidente, portanto, que a evolução legislativa a respeito do tema foi gradativa e constante.
Espera-se que muito em breve as “bets” ou apostas esportivas também sejam devidamente regulamentadas, pois, assim como a loteria, estão relacionadas, de alguma maneira, à sorte do apostador. E em um país com tanta desigualdade social como o Brasil, a delicadeza do tema é evidente; muitos enxergam nesse cenário a única oportunidade de ascensão social.
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BETS correspondem a 80% de patrocínios na Série A do Brasileiro: levantamento também revela que empresas de bet correspondem a 30% dos patrocínios no futebol mundial. Levantamento também revela que empresas de bet correspondem a 30% dos patrocínios no futebol mundial. 2024. Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/corinthians/bets-correspondem-a-80-de-patrocinios-na-serie-a-do-brasileiro,fbd5bfc6d63f81771dd92ffc427fa7aetcqzynk9.html. Acesso em: 30 maio 2024.
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O que é o ‘jogo do tigrinho’ e por que ele é ilegal no Brasil: número de prejudicados e os ganhos obtidos por influencers levaram a polícia civil do maranhão realizar uma operação que investiga um esquema criminoso em torno do jogo “fortune tiger”. Número de prejudicados e os ganhos obtidos por influencers levaram a Polícia Civil do Maranhão realizar uma operação que investiga um esquema criminoso em torno do jogo “Fortune Tiger”. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/12/17/o-que-e-o-jogo-do-tigrinho-e-por-que-ele-e-ilegal-no-brasil.ghtml. Acesso em: 30 maio 2024.
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