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Operações societárias de construtora são consideradas abusivas e resultam na procedência de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica
O processo de origem do incidente
O credor (“C”) ajuizou um Processo de Execução em face de sua devedora (“D”), uma das maiores empresas de construção civil do país para cobrar um crédito de centenas de milhões de Reais. “D” foi citada em outubro de 2016.
Mas o que aconteceu antes do ajuizamento da execução?
Antes do ajuizamento da Ação de Execução, a executada construtora “D”, em conjunto com algumas outras empresas do mesmo grupo econômico (algumas com sede no Brasil e outras domiciliadas no exterior), havia requerido sua primeira Recuperação Judicial em março de 2015, mas o credor “C” prosseguiu com o ajuizamento da Execução porque estava convicto de que seu crédito era extraconcursal. “D” tentou incluir o credor como um dos credores que deveriam ser submetidos aos efeitos da recuperação judicial, mas seus esforços foram inúteis. Após sucessivos expedientes e recursos que chegaram até o Superior Tribunal de Justiça, o crédito de “C” foi mantido como extraconcursal em decisão que transitou em julgado.
Com o objetivo de deixar-se opaca às ações dos credores, as demonstrações financeiras da companhia devedora relativas aos exercícios de 2015 e 2016 foram publicadas com ressalvas dos seus auditores independentes, que afirmaram que elas não refletiam adequadamente a situação patrimonial e financeira da empresa. A partir de 2017, inclusive, mais nenhuma demonstração financeira foi publicada.
Enquanto isso, o credor buscava localizar bens
Nesse meio tempo, diversas diligências foram realizadas na busca de se penhorar bens suficientes para garantir a execução, as quais foram objeto de novos recursos, nos quais a devedora também não logrou êxito. Por outro lado, iniciativas como o Bacenjud e penhora de faturamento resultaram infrutíferas para qualquer fim prático.
A primeira recuperação judicial da construtora “D” foi encerrada por sentença em março de 2020 e, pouco depois, a construtora e seus controladores colocaram em prática um plano para impossibilitar aos credores extraconcursais (como era o caso de “C”) e supervenientes ao deferimento da recuperação o recebimento de seus créditos.
Em agosto daquele ano, a empresa “S” (também uma construtora), controladora da devedora “D”, criou “K”, uma nova empresa cujo objeto social era praticamente igual ao da construtora “D” e tinha capital social de alguns milhares de Reais. Em seguida, alguns ativos da construtora “D” foram cedidos para a fundos de investimento sediados em países no exterior, que garantem o sigilo aos investidores.
Em dezembro de 2020, já após o trânsito em julgado da decisão que extinguira a primeira recuperação judicial de “D”, a nova empresa “K” aprovou a elevação do seu capital social de alguns poucos milhares para dezenas de milhões de Reais. A maior parte desse aumento de capital foi subscrito pela construtora “D” (devedora original), que veio a integralizá-lo mediante duas espécies de bens: o acervo técnico, projetos executivos e certificações detidos por “D” e créditos contra empresas não relacionadas aos controladores que a devedora original tinha.
Um pouco de conceituação de construção civil
“Acervo técnico” é conceito desenvolvido no Capítulo II da Resolução n°1025/2009 do CONFEA – Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – como sendo o conjunto das atividades desenvolvidas ao longo da vida do profissional ou da empresa compatíveis com suas atribuições e registradas no Crea por meio de anotações de responsabilidade técnica. A Certidão de Acervo Técnico – CAT é o instrumento que certifica, para os efeitos legais, que consta dos assentamentos do Crea a anotação da responsabilidade técnica pelas atividades consignadas no acervo técnico do profissional. O “acervo técnico” transferido da construtora “D” para a construtora “K” era, por conseguinte, mais do que o histórico dos trabalhos técnicos e profissionais desenvolvidos pelos profissionais da devedora original; era a transferência da própria capacidade de construtora “D” continuar participando de obras e licitações, e, assim, continuar gerando receita.
Qual o efeito prático disso?
Com a cessão de créditos, a antiga construtora “D” cedeu para nova construtora “K” o direito de receber os valores que lhe eram devidos em virtude de mais de quatro centenas de créditos que estavam registrados no seu ativo e cujos valores históricos, somados, valeriam várias dezenas de milhões de reais, oriundos de obras – das mais variadas naturezas, inclusive a construção de residências, edifícios de apartamentos, estradas, barragens, portos, etc. – executadas entre 1977 e 2018, no Brasil e no exterior. A falta de informações públicas (lembre-se que a executada havia parado de publicar demonstrações financeiras confiáveis desde 2014, pelo menos) não permite estimativa correta do valor desses créditos no momento da subscrição, mas é certo que eles valiam muito mais, pois aos seus valores históricos teriam de ser somados, no mínimo, os ajustes pelo valor do dinheiro no tempo, sem falar nos “aditivos contratuais” que são corriqueiros em obras de grande porte.
E com que objetivo essa estrutura foi concebida?
Ainda em dezembro de 2020 foi concluído o rito da Lei das Sociedades Anônimas para a subscrição e integralização do aumento de capital da nova construtora “K” pela devedora executada, com a transferência final do “acervo técnico” e dos créditos.
Novos movimentos em 2021
O esquema do “castelo de cartas” engendrado teve novos movimentos em 2021.
Em janeiro de 2021, assembleia da empresa “S” (controladora da “D”) aprovou um aumento de capital em valor praticamente igual ao aumento de capital que a construtora “D” (executada) havia subscrito na nova companhia construtora “K”. Ato contínuo, uma assembleia geral extraordinária de “S” aprovou aumento de seu próprio capital, que foi integralmente subscrito por “P”, empresa de participações que exerce o controle absoluto de “S”. Este aumento de capital da construtora “S” (que controlava a construtora “D”, que controlava a construtora “K”) foi subscrito pela empresa de participações “P” (que controlava a construtora “S”, que controlava a construtora “D”, que controlava a construtora “K”) e foi integralizado com créditos que “P” tinha junto a outras empresas subsidiárias de “S”, ou seja, créditos de operações dentro do próprio grupo econômico.
Em abril de 2021, a construtora “S” (empresa que controlava a devedora “D”) adquiriu a participação da executada construtora “D” na construtora “K”. Como resultado, havia duas linhas de controle: 1) “P” controlava “S”, que controlava “K”; e 2) “P” controlava “S”, que controlava “D” e outras empresas subsidiárias de “S” que haviam se tornado devedoras da construtora “D”. Em seguida, a empresa de participações “P” instruiu a sua controlada construtora “S” a vender para terceiros “I” não identificáveis em documentos públicos as ações que ela construtora “S” tinha no capital de “D” e as participações que “S” tinha junto outras empresas suas subsidiárias que haviam se tornado devedoras da construtora “D”.
Em outubro de 2021, a AGE da executada “D” que, a esta altura já tinha uma nova denominação social, determinou o ajuizamento de sua segunda recuperação judicial, a “RJ” da “RJ”.
E qual a consequência disso?
Como resultado dessas operações societárias, surgiram duas cadeias societárias. Uma supostamente saudável e “recuperada”, que é composta por “P”, que controla a construtora “S”, que controla a construtora “K” (P-S-K). E o credor “C” foi deixado como credor da “nova” estrutura societária, submetida à RJ da RJ, composta das empresas que se tornaram mera casca para “ativos podres” e dívidas não pagas e impagáveis, que é composta por “I”, que controla “D” (I-D).
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica em si
O credor “C”, então, ingressou no seu Processo de Execução e suscitou um Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) da sua devedora “D” pedindo para que o seu processo de cobrança possa alcançar os bens da cadeia societária com posta por “P”, que controla a construtora “S”, que controla a construtora “K” (P-S-K).
Após apresentar os fatos, todos apurados a partir de documentos públicos, o credor argumentou que tudo indicava uma trama societária para transferir patrimônios entres sociedades, sujeitar credores, a fórceps, a regime de recuperação judicial do qual já haviam sido excluídos, e fraudar credores, deixando clara a presença dos pressupostos necessários à desconsideração das personalidades jurídicas as empresas envolvidas na trama que esvaziou o patrimônio da executada, nos exatos termos do art. 50 do Código Civil.
Argumentou a inicial do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica que cadeia de comando “P-S-K” foi utilizada como simples instrumento para sifonar ativos que existiam na devedora, construtora “D” e foram transferidos para a construtora “K”.
Discutindo em profundidade os atos societários e demais informações públicas, o credor demonstrou que o exame dos objetos sociais das companhias envolvidas também não permite que se note qualquer diferença juridicamente relevante entre elas. Elas também não se diferenciam pela sua administração, já que todas compartilham os mesmos diretores nomeados. Não havia distinção de finalidade societária, operacional, controle ou gestão.
A estrutura de controle das empresas do grupo foi montada em camadas apesar da inexistência de especialização ou individualização para que as diferentes entidades jurídicas pudessem servir de escudos, umas tentando proteger as outras, dos riscos financeiros, administrativos e tributários decorrentes da atividade empresarial. Elas funcionavam e funcionam como uma gosma societária que funde e divide suas partes em diferentes entidades para dificultar o acesso dos terceiros aos resultados patrimoniais da atividade que é exercida de maneira integrada, com as empresas prestando serviços recíprocos e transferindo resultados entre elas.
Um dos traços peculiares deste Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica é que ele não discute a licitude de um ato jurídico isolado, mas o conjunto das operações societárias, realizadas com o fim de esconder patrimônios que poderiam ser alcançados por credores não sujeitos à Recuperação.
A cadeia de controle P-S-K abusou das personalidades jurídicas, usando os mecanismos da criação, aumento de capital e transferência de controle das entidades jurídicas meramente com o intuito de esconder o destino dos recursos financeiros da empresa. A alteração da denominação de algumas das empresas e a suposta alienação do controle da companhia devedora “D” de “S” para “I”, antes de afastar o abuso da personalidade jurídica, apenas o teria reforçado.
O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica também argumentou que o abuso da personalidade jurídica teria sido qualificado pelo desvio de finalidade, nos exatos termos definidos no §1º do art. 50 do Código Civil, ou seja, a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Os bens e direitos da companhia devedora são migrados “daqui para lá, de lá para cá” conforme este ou aquele credor se aproxime, como ficou evidente no curso do Processo de Execução. As sucessivas transferências de bens e capitais para entes societários diversos, muitos com participações societárias recíprocas, e todos com nomes muito parecidos só para tornar confusa e emaranhada a arquitetura societária, dando a impressão de que são empreendimentos diversos, quando, na verdade, são e operam como uma realidade econômica una e indivisa.
Finalmente, a inicial do IDPJ mergulhava nos números e valores envolvidos para demonstrar que confusão patrimonial entre as pessoas envolvidas também se manifestara pela transferência de ativos sem contraprestação efetiva e pela prática de atos de desrespeito à autonomia patrimonial das diferentes pessoas jurídicas envolvidas.
Após as requeridas no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica terem exercido largamente o contraditório e dispensado a produção de provas, foi proferida decisão reconhecendo o abuso da personalidade jurídica e permitindo que a execução prosseguisse contra as sociedades “P”, “S” e “K”.
As requeridas agravaram e o recurso interposto pelas construtoras “S” e “K” teve negado seu provimento por acórdão proferido pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O que decidiu o Poder Judiciário?
A decisão de primeiro grau, ao julgar procedente o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, dera muita ênfase ao fato de que todas as empresas envolvidas seriam integrantes do mesmo grupo econômico. O acórdão da 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conquanto tenha afirmado que a mera formação de grupo econômico, por si só, não autoriza a superação da personalidade jurídica avançou para o exame de todo o mérito do processo e entendeu que o abuso da personalidade jurídica estaria seguramente comprovado, pelo desvio de finalidade, na acepção de utilização da pessoa jurídica devedora (“D”) com o propósito de lesar credores.
Para o acórdão, não há explicação razoável para as transferências patrimoniais realizadas, que, em vez de contribuir para o soerguimento da empresa, teria levou-a a um novo processo de recuperação judicial (RJ da RJ). Tudo teria sido feito no interesse exclusivo da controladora. Ao final, concluiu o acórdão: “uma vez que o abuso favoreceu as agravantes, enquanto pertencentes ao mesmo conglomerado, isto é, antes do repasse do poder de controle, elas se sujeitam às consequências do reconhecimento da ilicitude.”
Autores: Bruno Marques Bensal e Marcos Cavalcante de Oliveira