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O sistema de provimentos vinculantes do CPC de 2015 e uma análise de procedimento do Tema 1.002 do STJ
O presente texto tem como finalidade avaliar a condução do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº 7 admitido e julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, posteriormente afetado pelo Superior Tribunal de Justiça como repetitivo sob o Tema nº 1.002, notadamente o sentido de uniformização da jurisprudência dos tribunais com estabilidade, integridade e coerência, preceito fundamental da cultura brasileira de observância de provimentos vinculantes.
Referido acórdão será comentado com foco acentuado na discussão registrada na colheita de votos dos julgadores integrantes da Câmara de Uniformização, sobretudo as digressões a respeito do sistema de precedentes do CPC, sem qualquer juízo de valor sobre o direito material envolvido.
O acórdão objeto de análise foi publicado em 18/07/2017, nos autos do IRDR nº 7 (Processo nº 0051570-97.2016.8.07.0000), julgado pela Câmara de Uniformização do TJDFT, cuja tese fixada foi a de que “nas ações de resolução imotivada de contrato de promessa de compra e venda de imóvel ajuizada pelo comprador, quando inexiste mora anterior da vendedora, com ou sem alteração da cláusula penal, os juros de mora deverão incidir a partir da citação (art. 405 do CC).”
O incidente foi instaurado com o objetivo de fixar tese jurídica quanto ao termo inicial dos juros de mora nos casos de resilição imotivada do contrato de promessa de compra e venda de imóvel por parte do comprador, sem que houvesse mora da incorporadora – alegando-se risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, requisito previsto no art. 976, do CPC quanto ao cabimento do IRDR.
O resultado do julgamento foi tomado por maioria apertada e o principal argumento discutido na divergência foi a jurisprudência dominante do STJ a respeito do tema julgado. No resultado do IRDR, o termo inicial do cômputo dos juros de mora aplicado foi a citação, a despeito de o STJ decidir majoritariamente que deve ser o trânsito em julgado.
Os votos divergentes trouxeram argumentos diversos, ora discutindo o direito material, ora o direito processual, e, nesse aspecto, o pano de fundo em quase todos foi a pertinência ou não da fixação de tese por meio de IRDR de maneira contrária à jurisprudência do STJ.
Nesse sentido, a divergência foi aberta pelo Desembargador Esdras Neves, contudo, seu voto tocou de maneira superficial no ponto que interessa a esse trabalho ao afirmar que os juros moratórios incidentes a partir do trânsito em julgado da sentença na hipótese era o entendimento do STJ.
Em seguida, o Desembargador Sérgio Rocha acompanhou a divergência, sob o argumento de que o sistema de precedentes do CPC tem o escopo de estabilizar a jurisprudência, seguido pelo Desembargador Angelo Passareli, o qual afirmou que “na vigência do Código de 2015, o precedente tornou-se relevante e o nosso destino é a uniformização da jurisprudência, segundo orientações emanadas de tribunais superiores”.
Merece destaque também o argumento do Desembargador Arnoldo Camanho de Assis, que, embora partindo de premissa adequada ao art. 927 e o grau de vinculação de cada provimento jurisdicional elencado em seus incisos, usou do argumento para chancelar a tese contrária ao entendimento do STJ:
Temos um sistema brasileiro de precedentes e uma observação que talvez mereça ser feita é que, no sistema inglês, quando um juiz julga uma matéria, ele não sabe que aquilo que está julgando será um precedente. Aquilo só vira um precedente quando outro juiz usa aquele julgamento como fundamento para proferir uma nova decisão em caso semelhante àquele. No Brasil, não. A própria lei, no art. 927, já diz o que deve ser considerado “precedente”. Por isso que se diz “sistema brasileiro de precedentes”, porque aqui definimos de antemão o que vai ser considerado precedente.
No meu modo de ver, no art. 927 ¬- que diz que os juízes e os tribunais observarão essa lista de decisões, enunciados, acórdãos etc. no momento de proferir os seus julgamentos -, esta lista aqui deve ser lida com certo temperamento. Nem tudo que está aqui é de caráter obrigatoriamente vinculante.
[…] O fato é que, da leitura de todos esses incisos, não consta como um precedente – seja de caráter vinculante, seja de caráter argumentativo – a jurisprudência reiterada no colendo Superior Tribunal de Justiça. O que se deve seguir do colendo Superior Tribunal de Justiça são acórdãos em julgamento de recursos especiais repetitivos. Não consta, até onde me é dado saber, que tenha sido esse tema afetado para julgamento por um recurso especial repetitivo, de modo que é possível, sem quebra de reverência e sem desafiar a jurisprudência da corte Superior, que se decida em sentido contrário.
Realmente, o entendimento majoritário do STJ a respeito de um determinado tema não torna a tese vinculante aos demais juízes e tribunais para efeito do art. 927, do CPC.
Também é verdadeira a afirmação de que no Brasil existem certas decisões que possuem observância obrigatória porque a lei assim dispôs e não porque culturalmente os juízes e tribunais decidem com base em razões extraídas de decisões anteriores que refletem posições valoradas e consolidadas de um determinado Juízo ou Tribunal.
A conclusão do caso foi no sentido de que não sendo o entendimento dominante do STJ uma espécie de precedente obrigatório, nada impediria que o TJDFT pudesse contrariar o entendimento daquele Tribunal Superior, inclusive para formar um entendimento com maior grau de vinculação formal do que o entendimento do STJ.
A necessária observância do art. 926 na formação de provimentos vinculantes pelos Tribunais
Nesse ponto é que, embora reconhecendo-se a solidez do argumento, vale registrar um apontamento invocando um pressuposto, uma regra geral do sistema de observância de precedentes do CPC, o art. 926, que precede o art. 927 que enumera os provimentos jurídicos vinculantes que devem ser observados pelos juízes e tribunais.
O art. 926 do CPC é um antecedente lógico e principiológico da regra do art. 927, cuja observância é igualmente obrigatória pelos órgãos julgadores.
Mais ainda, interpretando-se sistematicamente os dispositivos tem-se que a estabilidade, integralidade e coerência devem ser resguardadas não somente no âmbito dos Tribunais considerados isoladamente e horizontalmente entre os órgãos que os constituem, mas reciprocamente, em diálogo discursivo, sob pena de uma colisão inaceitável entre teses igualmente vinculantes.
A propósito, o argumento do Desembargador Teófilo Caetano trata com sutileza desse aspecto no julgamento do IRDR comentado ao fazer uma distinção bastante pertinente a respeito do contexto federativo, no sentido de que o TJDFT está conferindo interpretação contrária ao STJ em matéria de direito infraconstitucional federal, do qual é o Tribunal Superior responsável pela pacificação, inclusive se a matéria for levantada após o julgamento de IRDR julgado no âmbito de qualquer dos tribunais estaduais e federais.
Não se quer com isso afirmar que o IRDR deva ser limitado no que diz respeito à matéria jurídica objeto de controvérsia em tese, até porque o legislador não criou nenhuma restrição nesse sentido e vale a máxima de que não cabe fazer restrições onde legislador não permitiu, sob pena de esvaziamento do incidente.
Diferente seria se a matéria discutida decorresse de interpretação de legislação estadual ou cujo objeto revelado fosse de interesse especificamente regional ou local.
É possível imaginar que mesmo uma discussão envolvendo a legislação federal possa atingir as diferentes regiões do país com intensidades diferentes e que não devem ser desconsideradas pelos tribunais locais, os quais estão mais próximos daquelas realidades e das pessoas que integram a parcela da sociedade que espera uma solução adequada, a exemplo de discussões sobre a prestação de um serviço público ou a incidência de um tributo de competência estadual.
Lembre-se, ainda, que as distinções são uma forma de amadurecimento do direito que leva em conta nuances que não são necessariamente percebidas pela série de julgados precedentes àquelas discussões e esses aspectos também precisam ser colocados na balança, eis que a observância aos precedentes é rígida em tese e pode haver decisão que deixa de segui-los, desde que fundamentada.
A propósito, fundamentação é diferente de motivação, pois o direito não é um fim em si mesmo e depende de um fato valorado, um motivo determinante, o elemento que evidencia a necessidade de se afastar de uma ideia preexistente sobre o direito discutido e já reconhecido pela jurisprudência e que justifica, portanto, deixar de seguir um determinando entendimento de maneira fundamentada, conforme prevê o art. 489, § 1º, inciso VI, do CPC.
A noção de precedente não pode estar desvinculada da noção de coerência do próprio direito, uma vez que o direito também envolve tudo o que é decidido pelos mais diversos órgãos julgadores. Não à toa a sociedade observa o que decidem os juízes e tribunais a respeito desse ou daquele tema em nível regional ou nacional e toma decisões relevantes com base nessas conclusões.
Daniel Mitidiero1 aponta que as pessoas observam o que diz a jurisprudência para saber qual o seu espaço de liberdade de ação e quais os efeitos jurídicos decorrentes das suas opções socioeconômicas com base no princípio da liberdade, o que tem relação com a noção de cálculo de custo-benefício verificável tanto com uma simples decisão de consumo quanto um investimento numa determinada atividade empresarial complexa.
Por essa razão é que antes de qualificar provimentos judiciais que devem ser observados pelos juízes e tribunais, devem esses mesmos juízes e tribunais resguardar a coerência e a integridade da jurisprudência – porque assim garantirão a integridade e coerência do próprio direito e com ela a segurança jurídica, a proteção da confiança e a isonomia, valores umbilicalmente ligados à noção de Estado Democrático de Direito e ressalvados pelo próprio sistema (art. 927, § 4º, do CPC).
A observância das decisões vinculantes e o papel da distinção fundamentada
É comum e no julgamento comentado também já foi visto que esse sistema de observância de decisões vinculantes consolidado no CPC tem como referência a cultura do direito jurisprudencial típico da common law.
Trata-se de uma referência válida desde que seja feita a ressalva fundamental de que existem certas decisões que possuem observância obrigatória, porque a lei assim dispôs, e não porque culturalmente os juízes e tribunais decidem com base em razões extraídas de decisões anteriores que refletem posições valoradas e consolidadas de um determinado Juízo ou Tribunal.
Essa diferença é fundamental entre o sistema brasileiro e a cultura de precedentes estrangeira.
A referência a common law nos interessa para entender qual o sentido da observância de decisões que podem ou não ser qualificadas como precedentes e que podem influir ou não no processo normativo, entendido aqui como o exercício hermenêutico de interpretação de fato, regras e princípios para construção de um comando judicial concreto.
E dessa referência decorre a doutrina do stare decisis, conceito que guarda relação tanto com a estabilidade do direito quanto as balizas de observação necessária diante de mudanças naturais no curso da história da sociedade e consequentemente refletidas no direito.
Veja-se trecho de texto de Edward D. Re2, traduzido pela ex-Presidente do STF, Ministra Ellen Gracie, publicado na Revista de Informação Legislativa em 1994 a respeito da estabilidade enquanto valor perseguido no direito jurisprudencial:
A estabilidade exige uma continuidade com o passado e é necessária para permitir que os membros da sociedade conduzam suas atividades diárias com um razoável grau de certeza quanto às consequências jurídicas de seus atos. A mudança implica variação ou alteração daquilo que está fixo ou estável. Sem mudança, no entanto, não pode haver progresso.
[…] Além de prestigiar a estabilidade e permitir o desenvolvimento de um direito consistente e coerente, também servia a outras benéficas funções. Ele preservava a continuidade, manifestava respeito pelo passado, assegurava igualdade de tratamento aos litigantes em idêntica situação, poupava os juízes da tarefa de reexaminar as regras de direito a caso subsequente e assegurava à lei uma desejável medida de previsibilidade.
Quando o legislador brasileiro sistematizou um regramento aplicável à realidade já conhecida dos provimentos de observação da jurisprudência trouxe consigo também as balizas profundas que sugerem o respeito à integridade e coerência do direito como um todo e não somente uma permissão para que os juízes e tribunais criem provimentos no âmbito de suas competências quando diante das situações previstas no art. 927 e incisos do CPC – como se a coerência devesse ser observada somente quando preexistente um provimento vinculante de grau máximo, a exemplo do controle concentrado de constitucionalidade e das súmulas vinculantes.
Interpretar o art. 927 de maneira ilimitada prejudica a estabilidade, a coerência e a integridade do direito proclamadas pelo art. 926, simplesmente para sustentar uma mera escolha, mesmo sabendo que a decisão em IRDR está sujeita à interposição de recurso especial ou extraordinário com efeito suspensivo, conforme o art. 987, do CPC, e eventual reforma do acórdão, sem prejuízo dos efeitos práticos dessa tomada de decisão.
Como visto a respeito da doutrina do stare decisis, a observância do precedente tem compromisso com a estabilidade, mas não se ignora a mudança – desde que a mudança tenha motivo determinante e diga respeito à impertinência prática da principiologia contida no precedente3:
A doutrina do stare decisis consequentemente não exige obediência cega a decisões passadas. Ela permite que os tribunais se beneficiem da sabedoria do passado, mas rejeitem o que seja desarrazoado ou errôneo. Antes de mais nada é necessário que o tribunal determine se o princípio deduzido através do caso anterior é aplicável.
O CPC, assim como a Constituição Federal (art. 93, inciso IX), dialoga intimamente com o dever de fundamentação das decisões judiciais.
Daí porque a observância dos precedentes, a despeito da discussão sobre a sua (in)constitucionalidade, é rígida somente em tese, pois por meio da fundamentação os juízes e tribunais destinatários da norma do art. 927 podem afastar as teses vinculantes se encontrarem elementos distintivos ou que demandem superação da tese central.
Essa possibilidade é necessária para o exercício do bom senso na atividade jurisdicional ao lidar com as contradições da vida – com a inevitável dualidade entre contexto e acaso, estabilidade e mudança, tradição e transcendência. Assim é que a experiência da common law revela-se pela confluência das técnicas de observância dos precedentes e do estabelecimento de distinções4:
A obrigação de seguir os precedentes pode ser proclamada com vigor, mas, de fato, combina-se com a possibilidade de estabelecer distinções. O juiz seguramente levará em conta, em sua decisão, decisões judiciárias anteriormente tomada, nunca dirá que algumas dessas decisões (tomadas por jurisdições de nível superior ou simplesmente igual ao da sua) foram mal proferidas. Mas ser-lhe-á possível, com frequência, considerando as circunstâncias dos diversos casos, descobrir, na lide que lhe foi submetida, um elemento particular que não existia, ou que não fora considerado nos casos precedentes e que, se não lhe permite descartar a regra precedentemente estabelecida, pelo menos lhe possibilita precisá-la, completa-la, reformulá-la, de maneira que dê ao litígio a solução “razoável” que ele requer.
O que se pretende evitar ao afirmar que a jurisprudência deve ser estável, íntegra e coerente é que essas qualidades só fazem sentido se assumirmos que a jurisprudência é fonte de direito e esses atributos não podem ficar à mercê das escolhas destes ou daqueles juízes ou tribunais – mas de todos os juízes e tribunais numa só voz5.
No caso comentado não houve qualquer argumentação em torno de algum elemento de distinção verificado no julgamento do IRDR que demandasse reflexão sobre a correção ou não do entendimento do STJ preexistente àquele julgamento. O voto da relatora do IRDR nº 7 passa por conteúdo de Súmula do STJ que serviu apenas de argumentação em torno do direito material aplicável e não como razão de decidir, tampouco sobre a conveniência de se decidir de maneira contrária ao tribunal superior.
No tocante ao entendimento preexistente sobre o tema central discutido no IRDR, o voto condutor de julgamento limitou-se a dizer que “mesmo havendo entendimento diverso esposado desde antigos precedentes do c. STJ (v. g. o de fls. 247/258), fato que o tema contido no presente IRDR não foi afetado para definição de tese nos tribunais superiores” (sic.), querendo referir-se ao art. 976, § 4º, do CPC, o qual impede o IRDR que verse sobre questão já afetada por tribunal superior.
Referido óbice tem sentido apenas do ponto de vista formal, mas não justifica a contradição orgânico-material.
O que se extrai da tese vencedora é que o TJDFT, embora ciente de que o STJ possuía entendimento uníssono sobre o tema discutido, ainda que não formalmente vinculante nos termos do art. 927, do CPC, optou por fazer prevalecer em sede de IRDR entendimento diverso apenas porque formalmente, repita-se, o STJ não se pronunciou sobre a incidência dos juros moratórios na hipótese discutida por meio de provimento vinculante.
Em resumo, a hipótese jurídica enfrentada pelo TJDFT era a mesma que já havia suscitado manifestação do STJ, e, não havendo qualquer distinção relevante que constasse da fundamentação do acórdão, só se pode concluir que o resultado decorreu de uma simples escolha pela tese vencedora e somente isso.
O art. 927, inciso III diz que os juízes e tribunais observarão os acórdãos tomados no IRDR e o art. 985, ao tratar do alcance da aplicabilidade dessa tese vinculante, ainda reforça que aquele acórdão é precedente de observância obrigatória no âmbito da competência territorial do tribunal e aplicável aos casos futuros, ou seja, há preocupação legítima com a previsibilidade e o custo-benefício por parte de quem ajuíza ou responde uma ação judicial em dado momento.
Nesse caso, o TJDFT verificou que a questão poderia continuar controvertida mesmo proferindo acórdão, e, por consequência, os múltiplos casos que precisavam de solução adequada de que trata o art. 976, inciso I, do CPC, mas optou por colocar no ordenamento mais um elemento de dissonância e não uma opção coerente ou motivada por algum elemento distintivo relevante.
Tramitação do Tema 1.002 no STJ e reflexão sobre o quórum qualificado nos incidentes capazes de formar precedentes vinculantes
Em linha com o previsto nos argumentos da divergência verificada neste julgamento, o acórdão do IRDR foi objeto de recurso especial.
Após a admissão do recurso especial pela presidência do TJDFT, o STJ recebeu o recurso tratando-o como representativo de controvérsia indicado pelo tribunal de origem, conforme o art. 256-H, do Regimento Interno, e, conforme parecer do Ministério Público Federal, o recurso especial nº 1.740.911/DF foi afetado à sistemática dos recursos repetitivos sob tema nº 1.002 em 10/12/2018, sem a suspensão dos processos versando sobre o tema.
Embora com divergência no julgamento, bem como o suscitado advento da Lei nº 13.786/18 (conhecida popularmente como “lei do distrato”), a qual entrou em vigor no decorrer da tramitação do recurso especial, mas após julgamento do IRDR questionado, a Segunda Seção do STJ manteve o entendimento consolidado de que os juros moratórios na hipótese discutida devem ser computados a partir do trânsito em julgado da sentença, prevalecendo o voto da Ministra Maria Isabel Gallotti, por maioria, vencido somente o Ministro Moura Ribeiro, relator.
Portanto, o exercício contido nos votos proferidos no IRDR do Tema 7 do TJDFT se confirmou quanto à temeridade de ser julgado tema jurídico sobre o qual o STJ teria a última palavra.
Vale destacar também um fator subjetivo e uma comparação. Tanto no IRDR quanto no recurso especial repetitivo subsequente foi verificada divergência. No TJDFT o resultado foi de 10 votos acompanhando a relatora e 8 votos divergentes, enquanto no STJ houve ampla maioria em torno da divergência aberta pela Ministra Maria Isabel Gallotti, tendo como vencido no âmbito da Segunda Seção somente o relator, Ministro Moura Ribeiro.
Este fator levanta discussão a respeito do quórum necessário para que esses órgãos colegiados possam referendar a fixação de teses que terão observação obrigatória logo a partir da publicação do acórdão, projetando-se tanto aos casos pendentes quanto aos futuros, notadamente porque o efeito prático dessas decisões é semelhante à atividade legislativa, bem como porque é a lei que ao conferir efeito vinculante acaba por transformar a jurisprudência em fonte do direito.
Indo além, há também a segurança jurídica e a previsibilidade nas relações sociais que passam pela noção de como os tribunais estão interpretando as fontes de direito cuja destinatária é a sociedade e qual o risco de tomar ou não certas decisões e de ter assegurado ou não um direito.
Os deveres de estabilidade, coerência e integridade da jurisprudência são suficientes para orientar a tomada de decisões no âmbito dos provimentos vinculantes, e, no caso do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, viu-se que o seu cabimento tem razão de ser não só como técnica de julgamento de múltiplos processos que versam sobre o mesmo tema controvertido, mas também evitar que sejam ofendidas a isonomia e a segurança jurídica, essa é a leitura simples do art. 976, caput e incisos do CPC, interpretação reforçada pelo vocábulo “simultaneamente”.
Nesse sentido, o art. 927, § 4º, do CPC, expõe uma regra que parece redundante em se tratando do dever de fundamentação, ao afirmar que a modificação de entendimento jurisprudencial observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios de segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Diante da relevância da questão o legislador não precisaria reafirmar o dever de fundamentação que já aparece no CPC como princípio fundamental com a cominação de nulidade se não observado, a rigor do art. 11 e o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, mas insiste porque a estabilidade é a regra e as mudanças são as exceções em se tratando de entendimento jurisprudencial, mais ainda envolvendo teses vinculantes que não amadurecem com o tempo – mas se projetam para o futuro a partir de um único julgamento.
O ideal seria que todas as decisões tomadas por meio do IRDR fossem resguardadas por dispositivos regimentais que demandassem quórum qualificado dos órgãos colegiados competentes para julgá-los, citando-se como exemplo o art. 271-E, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, ao tratar o quórum necessário para deliberar sobre o Incidente de Assunção de Competência6.
No caso do TJDFT, o IRDR foi julgado pela Câmara de Uniformização antes da Emenda Regimental nº 11, de 19/12/2018, que deu nova redação ao art. 17, acrescentando parágrafos, entre eles o § 3º, o qual dispõe que “A Câmara de Uniformização reunir-se-á na presença de desembargadores em número equivalente, no mínimo, a dois terços de seus membros.”
Observe-se, por fim, as ações que tratam do controle de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal, especialmente os arts. 27, da Lei nº 9.868/99 e 11, da Lei nº 9882/99, as quais exigem quórum qualificado de dois terços dos membros da Corte para modular os efeitos das decisões tomadas em sede de controle de constitucionalidade, por razões de segurança jurídica e interesse social, dispositivos semelhantes às regras art. 927, §§ 3º e 4º, do CPC, os quais tratam em sequência da modulação de efeitos e modificação de entendimento jurisprudencial e que são aplicáveis ao IRDR (art. 927, inciso III).
Conclusão
O caso comentado exemplifica o risco que o IRDR pode causar se o tribunal que estiver diante de controvérsia multitudinária não observar a necessidade de coerência, integridade e estabilidade da jurisprudência como um todo, uma vez que os jurisdicionados ficarão em situação indefinida diante de um acórdão de tribunal que tem a pretensão de solucionar controvérsia repetitiva, mas que ainda precisa passar por decisão de tribunal superior que sabidamente julga de maneira contrária.
O quórum qualificado não é capaz de resolver o problema colocado, mas atenua o risco. Tome-se como exemplo o quórum qualificado de dois terços dos membros de um órgão colegiado e as teses discutidas no IRDR comentado. Houvesse essa regra, semelhante ao mencionado art. 27, da Lei nº 9.868/99, o resultado de 10 a 8 não seria suficiente para referendar um acórdão que contrariou entendimento do STJ, pois a Câmara de Uniformização teria que fazer 12 votos favoráveis à tese da relatora.
Ou seja, o quórum qualificado não elimina o risco, mas aumenta a necessidade de construir um consenso sólido e como próprio nome diz: qualifica a responsabilidade que envolve a fixação de tese vinculante com efeitos projetados até mesmo para casos futuros.
Deve-se, na medida do possível e ausente motivo específico, evitar a fragmentação de entendimentos contrários por meio de técnica de julgamento de casos repetitivos, uma vez que o seu efeito é ainda mais perverso do que a multiplicidade de entendimentos pulverizados em inúmeras demandas individuais.
Autor: Jean Felipe Alves Bezerra