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O incidente de resolução de demandas repetitivas e o Superior Tribunal de Justiça
O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) encontra-se previsto no artigo 976 do Código de Processo Civil e é mais uma inovação do diploma processual em vigor desde março de 2016, e figura dentre os institutos processuais mais interessantes e debatidos desde então.
Não há correspondência para o IRDR no Código de Processo Civil de 1973, revogado por força da Lei nº 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil vigente), de modo que o incidente em questão representa, de fato, sistemática nova a ser adotada pelos Tribunais que, em geral, refletiram o novel instituto em seus respectivos regimentos.
A instauração do referido incidente mostra-se cabível quando houver, de forma simultânea, a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e para sanar divergência jurisprudencial que ofereça risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
O fim precípuo de sua previsibilidade e consequente aplicação é a fixação de tese jurídica a ser aplicada em todos os processos que se mostrem análogos, sejam individuais ou coletivos, e que tramitem na área de jurisdição do tribunal que julgar o IRDR.
O incidente deve ser apresentado antes do julgamento do recurso tido como paradigma pelo Tribunal e a decisão do tribunal que admite o incidente, deflagrando o início do procedimento, é irrecorrível.
Passados mais de 5 (cinco) anos da entrada em vigor do atual CPC, o instituto já é visto em volume considerável nos tribunais pátrios, em que pese, noutro prisma, não serem raras as hipóteses de sua inadmissibilidade, vez que não se tolera sua utilização como sucedâneo recursal.
Os legitimados para apresentação de pedido de instauração do IRDR estão previstos em rol taxativo encerrado no artigo 977 do CPC, de modo que não é admitida a apresentação do pedido por qualquer terceiro.
A despeito do rol taxativo dos autorizados a deflagrar o procedimento, o artigo 983 do CPC prevê que o relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, no prazo comum de 15 (quinze) dias, sendo que estes poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida. Em ato processual subsequente, é oportunizada a manifestação ao Ministério Público, em igual prazo.
O julgamento do incidente, por sua vez, caberá ao órgão indicado pelo regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal respectivo, o que também justifica as alterações produzidas pelos regimentos após a entrada em vigor do atual CPC, de modo a especificar, direcionar e atribuir corretamente as incumbências direcionadas pelo Código.
Neste sentido, o diploma processual prevê que o relator, quando (e se) admitir o incidente em questão, suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso.
Em que pese os requisitos mostrarem-se notadamente específicos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que até agosto de 2021 já haviam sido admitidos 543 IRDRs desde a entrada em vigor do CPC/2015.
O instituto é visto atualmente pelo Poder Judiciário como um elemento que contribui para a celeridade processual, proporcionando melhor e mais uniforme solução de questões repetidas muitas vezes à exaustão. Assim, considera-se que a inovação promovida pela inserção do incidente em um sistema de precedentes estabelecido pelo novo CPC é salutar, na medida em que os mecanismos previstos no CPC/73 se comprovaram insuficientes para a solução de litígios “em massa”.
Malgrado a atual visão positiva do instituto, alguns temas a si relacionados sofreram alteração no âmbito jurisprudencial, de modo a se estabelecer entendimento oscilante sobre uma questão específica: a possibilidade de instauração do IRDR no STJ.
De início, houve aceno negativo em relação à possibilidade de que se instaurasse o incidente diretamente no STJ, de modo que a indicação seria que o tema objeto da demanda poderia alcançar o Superior Tribunal de Justiça, quando e se o caso, em razão do manejo de Recurso Especial.
Ao analisar o AgInt na Pet 11.838/MS, a Corte Especial, entretanto, entendeu que o IRDR, em que pese inicialmente afeto à competência dos tribunais estaduais ou regionais federais, poderia ser instaurado diretamente no STJ em razão de competência recursal ordinária ou competência originária prevista em lei, desde que preenchidos os requisitos do CPC para tanto. Assim, o regimento interno da corte atualmente prevê, assim como o dos tribunais, a possibilidade de apresentação e processamento do incidente perante o STJ.
Outrossim, é de se recordar que o IRDR possui um pressuposto negativo, na medida em que o artigo 976, §4º do Código de Processo Civil prevê que sua instauração é incabível quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.
Ao que tudo indica, a discussão estabelecida inicialmente acerca do cabimento da instauração do IRDR no âmbito do STJ restou superada, de modo que se entendeu pela viabilidade de tal providência.
Noutro prisma, entretanto, não parece encerrado o debate acerca do cabimento do Recurso Especial em face de acórdão que fixa tese jurídica em abstrato.
Neste sentido, o Informativo de jurisprudência nº 737 da Corte, publicado em 23/5/2022, estabeleceu que:
Não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de ‘causa decidida’, mas apenas naquele que aplique a tese fixada, que resolve a lide, desde que observados os demais requisitos constitucionais do art. 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema.
Em que pese o inicialmente aparente preciosismo linguístico da decisão, que se apegou à literalidade da exigência legal, trata-se de requisito expressamente previsto na Constituição Federal, já que o artigo 105 estabelece no inciso III da Carta Magna que prevê que compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios.
Sob outro aspecto, ao julgar-se correto o entendimento aplicado na hipótese, esquece-se que o próprio incidente é extraído de casos cuja moldura fática é pré-existente e comum, de modo que há dificuldade em imaginar-se a fixação de tese integralmente em abstrato.
Aqueles que defendem a possibilidade de interposição de recurso especial em face da decisão que julga o IRDR destacam exatamente este ponto, no sentido da inviabilidade de se imaginar uma decisão pura e unicamente de direito. Assim, na impossibilidade de dissociar cirúrgica e hermeticamente os fatos da questão jurídica, não haveria que se falar em ausência do requisito constitucional.
Portanto, há relevante corrente que defende a possibilidade de interposição de recurso especial, de sorte que o requisito “causas decididas” estaria efetivamente cumprido, viabilizando a interposição do recurso especial ao menos neste quesito.
Para além de tal debate, parece-nos relevante destacar que, na linha do quanto já alertado por alguns autores, deixar de permitir a interposição do recurso especial em face da decisão que julga o IRDR no âmbito do Tribunal local causa efeito reverso àquele que adoção do mecanismo pretende obter.
Isto ocorre porque, conforme prevê o artigo 985 do Código de Processo Civil, em seu inciso I, quando julgado o incidente, a tese jurídica fixada deverá ser aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região.
Neste sentido, acaso não devidamente atribuída ao STJ a sua função constitucional de uniformizar o entendimento dos tribunais, na linha do que prevê a alínea “c” do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, haverá discrepantes posições entre os tribunais, cristalizadas em entendimentos via IRDR e adotadas regionalmente, o que fulmina o âmago do propósito do instituto em comento.
Veja-se, na medida em que prevê o artigo 985 do CPC que o quanto sedimentado em entendimento via incidente de resolução de demandas repetitivas deverá ser aplicado a todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito no âmbito daquele Tribunal em que tramitou o IRDR e, dessa forma, não se cogita sujeitar a decisão que julga o incidente ao crivo do STJ, quando o caso, formaliza-se a possibilidade de que convivam divergentes entendimentos sobre a mesma matéria de direito, cada qual com caráter vinculante perante o seu respectivo tribunal.
A chamada função nomofilática do STJ, prevista constitucionalmente e na própria Constituição Federal existirá apenas formalmente, na medida em que se autoriza que tribunal local adote entendimento diametralmente oposto ao de outro tribunal e ainda atribuindo-lhe efeito vinculante no âmbito daquele órgão de organização judiciária.
Portanto, parece-nos que, em que pese a existência de entendimento que acredite pacificada a questão, o texto do artigo 987 do CPC, que prevê que caberá recurso extraordinário ou especial, conforme o caso, do julgamento do mérito do incidente de resolução de demandas repetitivas deve ser interpretado em sua integralidade de forma a não se exigir do incidente específico peculiaridade não exigida pela legislação no sentido de que o recurso especial só possuiria permissivo para interposição quando, para além de julgar a questão de direito, o incidente decida uma causa.
Autora: Ana Gabriela Malheiros de Oliveira