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O avanço tecnológico acompanhado da evolução no entendimento acerca das assinaturas digitais em títulos executivos extrajudiciais
Alteração do art. 784 do Código de Processo Civil pela Lei 14.620/2023
Não é novidade que a pandemia do COVID-19 obrigou o mundo a pensar novas formas de continuar as atividades diárias, mesmo à distância. Na esfera jurídica também não foi diferente e a legislação precisou se adequar ao avanço tecnológico repentino.
As audiências e despachos passaram a ser realizados por videoconferência e os fóruns passaram a permitir o protocolo eletrônico urgente para processos físicos suspensos. Os Tribunais também aceleraram a digitalização de processos físicos e os advogados se viram obrigados a encontrar soluções dinâmicas para atender seus clientes e, principalmente, assinar à distância documentos relevantes1.
A assinatura eletrônica por meio de certificado digital não é novidade no mundo jurídico, visto que, no Brasil, sua regulamentação teve início com a Medida Provisória n.º 2200-2 de 24 de agosto de 2001, que criou o ICP-Brasil (responsável pela infraestrutura de chaves públicas) e do ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação).2 Entretanto, a assinatura digital no âmbito privado, desde contratos até procurações foi uma novidade que se popularizou a partir de 20203.
Foi nesse movimento de popularização da assinatura digital para o público privado que diversas questões legais passaram a surgir. A primeira delas foi quanto à validade da assinatura digital nos títulos executivos, principalmente os extrajudiciais, uma vez que não havia lei que regulasse esse cenário. E mais, a assinatura por certificado digital emitido por autoridade regulamentadora não era popularizada frente ao público geral4.
Isso quer dizer que com o início da pandemia, o setor privado passou a confiar a assinatura de documentos a diversos sistemas de assinatura eletrônica, credenciados ou não.
Todavia, é notório que a maior parte das pessoas não possuem amplo conhecimento acerca do conceito de autoridade certificadora, além de não dominarem os requisitos necessários para que determinada pessoa jurídica seja qualificada como uma autoridade certificadora, especialmente quando considerada a existência de sites que oferecem o serviço de assinatura digital que divulgam suas assinaturas como válidas e rápidas. 5
A fim de estudar e ampliar o horizonte do tema, inicialmente trataremos de questões relativas aos tipos de assinatura reconhecidos em lei e as diferenças entre elas.
Classificações quanto ao tipo de assinatura eletrônica utilizada
Acompanhando a tendência tecnológica em que o mundo estava inserido e visando a suprir as novas necessidades de interação que surgiram e se intensificaram com a pandemia, foi publicada no Diário Oficial, em 23 de setembro de 2020, a Lei 14.063/2020 (conversão da MP nº 983/2020), com o intuito de regulamentar a assinatura digital frente ao Poder Público6.
No texto da lei, a assinatura digital é definida em seu art. 3º, II, como:
Art. 3º Para os fins desta Lei, considera-se:
II – Assinatura eletrônica: os dados em formato eletrônico que se ligam ou estão logicamente associados a outros dados em formato eletrônico e que são utilizados pelo signatário para assinar, observados os níveis de assinaturas apropriados para os atos previstos nesta Lei;
Indo além, a lei apresentou um diferencial ao classificar a assinatura digital em três grupos distintos, sendo eles, assinatura eletrônica (i) simples, (ii) avançada e (iii) qualificada.
O primeiro grupo engloba assinaturas que permitem identificar o seu signatário e associam seus dados a outros dados eletrônicos identificáveis. A assinatura do terceiro grupo, qualificada, é a assinatura realizada por certificado digital emitido por autoridade certificadora (ICP-Brasil). Destacando-se que referida autoridade é entendida como uma organização responsável pela emissão, renovação e revogação de Certificados Digitais, além de gerir os certificados por ela emitidos.7
Por fim, temos o grupo definido como assinatura eletrônica avançada, em que se descreve como sendo aquela que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil (Agência autenticadora) ou outro meio de comprovação da autoria e integridade do documento assinado, mas sendo aceita pelas partes é válida, desde que respeite os três pilares estabelecidos pelo art. 4º, II, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘e ‘c’:
a) está associada ao signatário de maneira unívoca;
b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo;
c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável;
Insegurança jurídica quanto a assinatura digital em títulos executivos extrajudiciais (art. 784 do CPC)
Para adentrarmos no tema do presente artigo, necessário analisarmos os entendimentos exarados ao longo do tempo quanto às assinaturas eletrônicas. P Ainda no ano de 2017, quando a questão ainda não apresentava tamanha relevância, o Judiciário já havia discutido o tema, afirmando que assinaturas digitais seriam válidas, desde que emitidas por autoridade certificadora:
“(…) Documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas. Inteligência do art. 784, inciso III, do CPC. Assinatura dos envolvidos concretizada por intermédio de certificado digital devidamente emitido pela ICP – Brasil, nos termos do artigo 1º, § 2º, III, letra “a”, da Lei nº 11.419/2006. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO” (TJSP, 8ª Vara Cível, Rel. Desembargador AFONSO BRÁZ, Agravo de Instrumento 2017568-05.2017.8.26.0000, julgado em 07/03/2017).
(…) POSSIBILIDADE, EM FACE DAS PECULIARIDADES DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO, DE SER EXCEPCIONADO O DISPOSTO NO ART. 585, INCISO II, DO CPC/73 (ART. 784, INCISO III, DO CPC/2015). QUANDO A EXISTÊNCIA E A HIGIDEZ DO NEGÓCIO PUDEREM SER VERIFICADAS DE OUTRAS FORMAS, QUE NÃO MEDIANTE TESTEMUNHAS, RECONHECENDO-SE EXECUTIVIDADE AO CONTRATO ELETRÔNICO. (…)
(…) 3. Possibilidade, no entanto, de excepcional reconhecimento da executividade de determinados títulos (contratos eletrônicos) quando atendidos especiais requisitos, em face da nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual (…)”. (STJ, Terceira Turma, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, REsp 1495920/DF, DJe 07/06/2018).
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULOS EXTRAJUDICIAIS. APELAÇÃO. FALTA DE ASSINATURA. DUAS TESTEMUNHAS. CONTRATO DE MÚTUO DIGITAL. EXCEPCIONALIDADE. CASO CONCRETO. CERTIFICAÇÃO DIGITAL. AUTORIDADE CERTIFICADORA. PRESENÇA. REQUISITOS EXTRÍNSECOS. ATESTADOS. (…) 2. Na espécie, o contrato de mútuo entabulado entre as partes por meio da internet foi regularmente certificado pela autoridade competente, o que pressupõe a regularidade da assinatura eletrônica e, por conseguinte, a presença do requisito extrínseco do título executivo extrajudicial, dispensando-se a exigência de assinatura de duas testemunhas. (…)” (TJDFT, 7ª Turma Cível, Rel. Desembargadora LEILA ARLANCH, Acórdão 1212992, 07009199720198070005, DJe 21/11/2019).
Esse entendimento prevalecia no ano de 2020, com decisões convertendo ações de execução fundadas em títulos executivos extrajudiciais em ações de cobrança, sob a fundamentação de que a assinatura eletrônica do documento não era válida, por não ser emitida por autoridade certificadora:
“(…) Execução de título extrajudicial – Determinação de conversão do procedimento em cobrança, por ausência de título regular – Assinatura digital certificada por entidade não credenciada pela autoridade certificadora – Insurgência do exequente – Alegação de higidez e segurança da assinatura – Não acolhimento – Autoridade Certificadora não credenciada no órgão competente (…)” (TJSP, 14ª Câmara de Direito Privado, Rel. Desembargador ACHILE ALESINA, Agravo de Instrumento 2289089-55.2019.8.26.0000, julgado em 23/01/2020);
No mesmo ano, ainda que necessária e corretamente regulamentada, a Lei 14.063/2020 buscou disciplinar somente interações com os entes públicos, não restando dúvidas que os entes estatais deveriam aceitar documentos assinados de forma eletrônica, ainda que pudessem exigir uma regulamentação específica em seus sites.
No âmbito privado o ordenamento ainda se mantinha omisso quanto à insegurança em relação à validade de documentos, em especial a validação de assinaturas de partes interessadas e de testemunhas de certos negócios jurídicos formalizados por documento particular para lhes conferir força jurídica de título executivo extrajudicial, nos termos do art. 784, inciso III, do Código de Processo Civil.
O art. 8º da referida Lei 14.063/20 amenizava um pouco a questão, ao dispor que assinaturas eletrônicas contidas em atas deliberativas de assembleias, de convenções e de reuniões das pessoas jurídicas de direito privado, devem ser aceitas pelas pessoas jurídicas de direito público e pela Administração Pública Direta e Indireta pertencentes aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não obstante, a dúvida quanto à reunião de pessoas físicas e documentos do âmbito privado permanecia8.
O impasse jurídico residia no fato de que, nos termos do Código de Processo Civil, a questão de assinatura digital não era discutida, muito menos tido como válida para situações como a mencionada acima9.
A preocupação pousava no fato de que, um contrato formalizado e assinado transforma-se em lei entre as partes, não havendo dúvidas acerca da sua obrigatoriedade de cumprimento. Orlando Gomes, aponta que:
“[…] o contrato é um pressuposto de fato do nascimento de relações jurídicas, uma das principais, senão a mais importante, fontes ou causa geradora das obrigações, o título de criação de nova realidade jurídica, constituída por direitos, faculdades, pretensões, deveres e obrigações, ônus, encargos. […]
Ao celebrar um contrato, as partes não se limitariam a aplicar o direito abstrato que o rege, mas estariam criando também normas individuais que geram obrigações e direitos concretos não existentes antes de sua celebração. Essas normas individuais, que compõem o conteúdo do contrato e exigem determinada conduta dos contratantes, teriam a mesma substância normativa da regra pacta sunt servanda, que aplicam ao celebrar o contrato10.”
Assim, tendo a relação jurídica contratual tamanha importância entre as partes, era imprescindível que se tivesse plena consciência acerca de sua validade ou não, notadamente porque a formação segura do título executivo é fundamental para tornar a obrigação efetiva sob todos os aspectos, pois tal insegurança poderia colocar em dúvida a higidez do título na hipótese de apresentação de defesa em ação de execução.
De tal forma, ainda que a Lei 14.063/2020 tivesse sanado algumas questões quanto à validade das assinaturas digitais, a dúvida sobre a validade no âmbito privado permanecia.
Alteração do art. 784 do CPC e a mudança de entendimento concretizada
Essa situação foi sanada em 2023, com a alteração do art. 784 do Código de Processo Civil11, pela Lei 14.620/2023, com a inclusão do § 4º. A nova redação dispõe o seguinte:
§ 4º Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura.
Isso quer dizer que, para ser considerado título executivo extrajudicial, qualquer tipo de assinatura é admissível, tanto aquela exarada via certificado digital gerado por autoridade certificadora, quanto através de sites de assinatura online.
Essa alteração encerra uma discussão que já vinha sendo tratada pelo Judiciário e que, em razão dos impactos da pandemia, viu a necessidade de decidir acerca da validade de contratos assinados eletronicamente, conforme decisão a seguir:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ASSINATURA ELETRÔNICA. VALIDADE DO DOCUMENTO. Os executados impugnaram a assinatura presente no Contrato de Confissão de Dívida. Porém, apesar do alcance distinto, a assinatura eletrônica também garante segurança e autenticidade. Diferente da assinatura digitalizada, a assinatura digital/eletrônica tem o mesmo valor de uma realizada a próprio punho. A agravante não negou a contratação da confissão de dívida, o que fazia presumir sua validade. Isto é, em nenhum momento no recurso a parte negou que seu representante fosse o autor daquela assinatura digital. Incidência do o § 2o do artigo 10º da Medida Provisória 2.200-2/2001. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e desta Turma julgadora. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO IMPROVIDO. (TJ-SP – AI: 20314981720228260000 SP 2031498-17.2022.8.26.0000, Relator: Alexandre David Malfatti, Data de Julgamento: 07/04/2022, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/04/2022)
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ASSINATURA ELETRÔNICA. MEIOS DE COMPROVAÇÃO. VALIDADE. 1. A assinatura digital, que é uma espécie de assinatura eletrônica, encontra-se regulamentada pela Medida Provisória nº 2.200-2/2001, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a validade jurídica de documentos em forma eletrônica. 2. A referida Medida Provisória não impede a utilização de outros meios de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive aqueles que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil (Art. 10, § 2º). Nesse passo, o artigo 4º da Lei nº 14.063/2020 estabelece a existência de três classificações de assinaturas eletrônicas, corroborando a validade das assinaturas que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil. 3. O executado poderá, em sede de embargos ou exceção de pré-executividade, dentre outros argumentos, suscitar eventual irregularidade do título, cabendo a ele o ônus da prova, por se tratar de fato impeditivo do direito do exequente (CPC, art. 373, II). 4. Deu-se provimento ao recurso. (TJ-DF 07424102820218070001 1434800, Relator: FABRÍCIO FONTOURA BEZERRA, Data de Julgamento: 29/06/2022, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 14/07/2022)
E mais, a lei também passou a prever que a necessidade de duas testemunhas é dispensada quando a integridade da assinatura e do documento puder ser conferida por provedor de assinatura, o que torna a formalização dos negócios muito mais simples e eficiente.
O impacto nesta questão é significativo considerando-se a crescente digitalização de processos na atividade econômica e empresarial, pois segurança é fundamental em qualquer prática negocial que depende da formalização por contrato escrito.
Tem-se, ainda, incremento da eficiência do ponto de vista subjetivo e de recursos humanos pela dispensa das duas testemunhas exigidas no contrato físico, uma vez que estas não são responsáveis pelo cumprimento do contrato, apenas resumem sua atividade em atestar que as assinaturas foram reais e realizadas pelos contratantes.
Se o sistema que fornece os meios de realizar a assinatura digital é capaz de atestar a validade e a autoria de quem assinou (bem como hora, data), a lei reputa que isso é suficiente para conferir validade e força de título executivo ao documento12.
Conclusão
Visto que o direito reflete as percepções, atitudes, valores, problemas, experiências, tensões e conflitos da sociedade13, foi necessária uma mudança de entendimento quanto à validade da assinatura digital, de modo que a legislação vigente precisou acompanhar a evolução tecnológica que o mundo passa neste momento.
A pandemia foi responsável por um avanço tecnológico estimado por pesquisadores de cerca de 10 anos14. É visível a mudança observada na forma como a sociedade interage e enfrenta questões a nível global, assim como a alteração na forma como o mundo enxerga a tecnologia.
O mercado e seus players, nos mais diversos segmentos, estão, cada vez mais, se rendendo aos avanços tecnológicos desenvolvidos durante a pandemia. São avanços que não só facilitam a vida em um modo geral, como ativamente conferem celeridade a muitas atividades e processos com garantia de segurança nos negócios jurídicos.
É imprescindível que, nesse cenário, a legislação seja capaz de acompanhar e regulamentar as relações jurídicas que nascem de tais interações. Não foi diferente com o Uber15, com o Home Office16,e tampouco deveria tardar com a assinatura eletrônica.
Autora: Tatiana Zarif Esberci