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Natureza e contagem de prazos no procedimento da Recuperação Judicial
O Código de Processo Civil atual, em vigor desde março de 2016, inovou em seu artigo 219 ao instituir a contagem de prazos em dias úteis, mediante ressalva inserida no parágrafo único que determinou que a regra seria válida tão somente para tais prazos.
O dispositivo legal gerou diversas celeumas, inclusive em relação ao prazo para pagamento de condenação previsto no artigo 525 do referido Código de Processo Civil.
No âmbito da Recuperação Judicial, estabelecida pela Lei Federal nº 11.101/2005, o debate não foi diferente.
As decisões proferidas em relação às diversas providências previstas no âmbito da mencionada lei não se mostravam uníssonas, demonstrando a ausência de consenso sobre o tema.
Parte I
Dentre as medidas que provocaram reflexão pelos tribunais e doutrina está o prazo para a impugnação de habilitação de crédito.
O artigo 8º da referida lei prevê que, no prazo de 10 (dez) dias, contado da publicação da relação referida no art. 7º, § 2º , da mesma lei, o Comitê, qualquer credor, o devedor ou seus sócios ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado.
Trata-se, assim, de providência cuja relevância em relação ao interesse do credor e ao deslinde do procedimento recuperacional é extrema, pelo que a definição da sistemática da contagem do prazo, para que os mencionados legitimados, é igualmente de suma importância.
A leitura conjugada do dispositivo legal contido na mencionada legislação específica com o artigo 219, parágrafo único, do Código de Processo Civil, parecia levar à conclusão de que o prazo para impugnação não deveria ser contado em dias corridos, mas sim em dias úteis, sem, no entanto, que se mostrasse ausente divergência jurisprudencial em sentido contrário.
O tema chegou à análise do Superior Tribunal de Justiça.
O Recurso Especial de nº 1830738 – RS (2019/0232251-5) tinha como objeto a análise da intempestividade de impugnação de crédito, bem como veiculava o recorrente a pretensão da aplicação da teoria do adimplemento substancial1 a contratos garantidos por alienação fiduciária abordados na Recuperação Judicial e objeto da impugnação apresentada.
O acórdão impugnado via apelo especial originado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia estabelecido o seguinte acerca da contagem de prazos para a apresentação da medida em questão:
Não merece acolhimento a preliminar de intempestividade da impugnação de crédito ajuizada pela ora recorrida, tendo em vista que, nos termos do art. 189 da Lei nº 11.101/2005 e do art. 219 do Código de Processo Civil, devem ser observados, no que couber, o CPC aos procedimentos previstos na Lei n° 11.101/05. Além disso, considerando o caráter processual do presente incidente, os prazos deverão ser contados em dias úteis, sendo, assim, tempestivo o incidente. Precedentes.
No STJ foi dado provimento ao recurso especial, para determinar a contagem do prazo de forma contínua, nos termos do art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005, reconhecendo a intempestividade da impugnação de crédito oferecida pela parte recorrida.
Em prestígio da mencionada subsidiariedade, o STJ destacou a dificuldade relacionada à classificação das normas da legislação falimentar entre materiais e procedimentais, estabelecendo que a Corte Superior firmou entendimento no sentido de que os prazos deverão ser contados de forma contínua na hipótese.
Foram mencionados como precedentes no sentido indicado AgInt no AREsp n. 1.548.027/MT, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/08/2020, DJe 31/08/2020 e o AgInt no REsp n. 1.774.998/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 19/09/2019, DJe 24/09/2019.
Vale mencionar que a decisão foi proferida em outubro de 2021, quando já em vigor a alteração na lei de falências e recuperação judicial, que ao modificar o artigo 189 da mesma lei, passou a estabelecer que:
Art. 189. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o disposto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
§ 1º Para os fins do disposto nesta Lei: (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
I – Todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos; – destacamos.
Portanto, inicialmente se mostrava solucionada a questão, entretanto, decisões, especialmente no que toca ao prazo de agravo de instrumento ainda são questionadas judicialmente.
Isto porque, em que pese a alteração legislativa, não são poucas as críticas ao texto final inserido na lei especial.
A redação que estabelece a menção a prazos que “decorram” da Lei nº 11.101/2005 trouxe imbróglio em relação a interposição do agravo de instrumento, que não decorre propriamente da lei especial em questão, mas sim da previsão do artigo 994, inciso II do Código de Processo Civil.
Parte II
Os tribunais vêm se manifestando no sentido de que se aplique a contagem de prazos em dias corridos, conforme se lê do acórdão proferido nos autos de nº 1017879-88.2021.8.11.0000 pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso. No caso, a intempestividade da insurgência foi suscitada pela parte recorrida, articulada na contraminuta apresentada e cujo acolhimento foi sugerido pelo representante do Ministério Público em Segundo Grau.
O objeto do recurso julgado intempestivo era relevante, inclusive sob o prisma financeiro, já que no caso concreto, o recorrente pretendia que a recuperação judicial fosse convertida em falência, destacando a ausência de cumprimento de requisitos pela recuperanda.
No entanto, o relator, desembargador João Ferreira Filho, consignou que a contagem do prazo deveria ser feita em dias corridos, nos termos do art. 189 da Lei 11.101/2005, nos moldes da redação dada pela Lei 14.112/2020, pelo que reconheceu a intempestividade da insurgência.
Vale salientar que, mesmo após a promulgação da alteração legislativa, ainda não há jurisprudência uníssona e estável sobre o tema, havendo risco de reconhecimento de intempestividade recursal quando utilizada a contagem em dias corridos.
O Tribunal de Justiça de São Paulo conta, atualmente, com duas câmaras de direito empresarial que julgam as questões relacionadas à Recuperação Judicial e Falência, e já reconheceu como acertada contagem dos prazos em dias úteis, obedecendo-se o teor do diploma processual que prevê o agravo de instrumento.
Neste sentido, é de se destacar o acórdão do Agravo de Instrumento de nº 2299349-60.2020.8.26.0000 que justamente estabeleceu que o prazo de agravo de instrumento, mesmo na hipótese da Recuperação Judicial, deve observar a contagem de prazos da lei que o origina, ou seja, o Código de Processo Civil. Assim, o entendimento exposto pelo TJSP na hipótese foi de que a contagem deveria efetivamente se dar em dias úteis, inclusive em razão do teor do artigo 189 da Lei de Recuperação Judicial e Falência.
O Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se pronunciar sobre a questão recentemente, quando do julgamento do Recurso Especial de nº 1962082 – MS (2021/0306890-5), julgado em 29 de junho de 2022.
O Ministro relator, Raul Araújo, considerou que o entendimento firmado pela Corte estadual, no sentido de que o prazo processual para interposição de recurso deve ser computado em dias úteis, na forma do art. 219 do CPC/2015, estaria em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, indicando o precedente anteriormente citado, qual seja a decisão proferida no AgInt no Resp n. 1.937.868/RJ, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/9/2021, DJe de 1/10/2021.
Em que pese a existência de julgados coerentes e que se mostram derivados da melhor exegese da norma, fato é que não há, até a data, julgado vinculante na forma do artigo 927 do Código de Processo Civil2.
Conclusão
Desse modo, a toda evidência, é possível entender que a redação atual do artigo 189 da Lei de Recuperação Judicial e Falência, produto da alteração legislativa de 2020, não solucionou na integralidade as questões relativas à contagem de prazos no âmbito dos procedimentos decorrentes da referida legislação, cuja natureza dos prazos (se de direito material ou processual) não é de fácil distinção, gerando nova questão que agora orbita em torno de quais prazos que decorrem efetivamente (ou não) da lei especial em debate.
Autora: Ana Gabriela Malheiros de Oliveira