Inexistência de exigência legal para que a celebração de contratos de empréstimos consignados com analfabetos ocorra por meio de instrumento público 

Nos últimos anos verificou-se uma grande quantidade de ações coletivas com o intuito de tornar obrigatória a necessidade de instrumento público de procuração para celebração de contratos de empréstimo consignado com analfabetos. 

A discussão envolve o grau de conhecimento e segurança que o mutuário sem condições de ler o contrato pode ter e quais os mecanismos possíveis para mitigar eventual déficit de informação. Defende-se nessas ações que o registro do contrato em cartório pode conferir maior segurança ao mutuário analfabeto.  

Essa pretensão, entretanto, não supera o fato de que a legislação não exige esse tipo de formalidade para contratos celebrados por analfabetos e, mais, que o registro em cartório não traz maior segurança ao mutuário, além de encarecer sobremaneira o próprio contrato.  

Em primeiro lugar é importante destacar o aparato normativo que envolve a discussão, na medida em que o Código Civil não elenca os analfabetos entre os plenamente incapazes ou entre os relativamente incapazes para os atos da vida civil. Desse modo, os analfabetos são plenamente capazes para todos os atos da vida civil.  

Além disso, o art. 107 do Código Civil determina que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente o exigir”.  

A doutrina sobre o assunto, por seu turno, é pacífica ao reconhecer que no direito brasileiro a incapacidade decorre da lei, como, por todos, se pode ver em Caio Mário da Silva Pereira[1]

Alguns escritores fazem distinção entre incapacidades naturais e incapacidades arbitrárias, ou puramente legais, as primeiras correspondentes a um estado físico ou intelectual da pessoa, as segundas ditadas por uma organização técnica das relações jurídicas. No direito brasileiro entendemos que não há lugar para a distinção. Toda incapacidade é legal, independentemente da indagação de sua causa próxima ou remota. É sempre a lei que estabelece, com caráter de ordem pública, os casos em que o indivíduo é privado, total ou parcialmente, do poder de ação pessoal, abrindo, na presunção da capacidade genérica, a exceção correspondente estritamente às hipóteses previstas. 

Nessa perspectiva, revela-se que não há exigência de qualquer forma especial em contratos celebrados por pessoas analfabetas. Essa é a regra geral e a regra que se mostra mais adequada para servir de orientação a ser adotada pelos Tribunais. Isso porque a adoção de entendimento no sentido de se fixar obrigação especial quando se tratar de parte analfabeta pode encarecer o contrato ou mesmo inviabilizar a sua realização, sem o correspondente acréscimo de segurança jurídica.   

De forma excepcional o art. 595 do Código Civil prescreve a possibilidade de que, em contratos de prestação de serviços celebrados por parte analfabeta, o instrumento seja assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas. Embora diga respeito a espécie de contrato diversa, a previsão legal tem sido adotada como meio de conferir maior segurança jurídica a contratos de empréstimo celebrados por parte analfabeta.   

Por outro lado, mesmo essa hipótese não exige o registro do contrato em cartório ou a sua celebração por instrumento público. É o que se verifica nos comentários de Jones Figueiredo Alves ao art. 595 do Código Civil[2]

Não solene o contrato, tendo em conta o seu objeto, a própria natureza de trabalho autônomo, quando o simples consenso das partes o aperfeiçoa, sem exigir forma especial, a prestação de serviços pode, entretanto, ser expressada por escrito. Na hipótese, é suficiente o instrumento particular, mesmo que qualquer das partes não seja alfabetizada. Preceitua a norma que, nesse caso, alguém a substitua, assinando a seu rogo, com a participação de duas testemunhas instrumentais. Desse modo, o só fato de a lei indicar que o instrumento contratual poderá ser escrito e assinado a rogo, quando qualquer das partes não souber nem ler, nem escrever, não o transmuda em solene. 

É importante destacar que, não obstante o volume de ações em que discutido o tema, já há grande número de precedentes em tribunais estaduais reconhecendo a ausência de norma que exija a contratação por meio de instrumento público. São exemplos os seguintes julgados:  

[…] Não obstante o grande número de ações judiciais envolvendo os fatos que permeiam o processo de origem, o dano defendido se mostra incerto, porque se verifica, em inúmeros casos, a improcedência de pleitos desta natureza, em razão de inverdades declinadas pelas partes demandantes, que, de fato, contratam e recebem o respectivo mútuo e, posteriormente, sob o subterfúgio de ser hipossuficiente, defendem a nulidade da contratação, quando, em verdade, não são incapazes de gerir sua vida financeira.  

Em contrapartida, tem-se que a vulnerabilidade social que assola o país não pode ser a causa de atribuição que não compete ao Poder Judiciário. Até porque, as alegadas fraudes são inerentes ao risco da própria atividade empresarial do banco requerido, ora agravante, a quem incumbe, caso demonstrada a falácia em detrimento do consumidor, arcar com os devidos custos com indenização a título de dano material e moral.  

Inexiste fundamento legal que exija que a contratação por pessoa idosa, analfabeta e indígena se concretize por meio de assinatura a rogo de procurador constituído por instrumento público, assim como na presença de duas testemunhas, identificadas com o nome, RG, CPF e endereço, tolhendo-lhe o direito de receber o produto do empréstimo mediante ordem de pagamento.  

Ademais, denota-se que a decisão agravada acabou por violar o exercício da atividade empresarial da instituição financeira, criando-lhe entraves. 

(TJMS. Agravo de Instrumento n. 1400523-56.2019.8.12.0000, Iguatemi, 2ª Câmara Cível, Relator (a):  Des. Marco André Nogueira Hanson, j: 24/04/2019, p:  25/04/2019) 

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL, DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO C/C RESTITUIÇÃO DE VALORES E DANOS MORAIS. CONTRATO DE EMPRÉSTIMO. CONTRATANTE ANALFABETO E COM IDADE AVANÇADA. CAPACIDADE CIVIL PLENA. REQUISITOS DO ART. 104 DO CC. ATENDIMENTO. NEGÓCIO JURÍDICO VÁLIDO. FORMALIZAÇÃO POR INSTRUMENTO PÚBLICO OU PARTICULAR. DESNECESSIDADE. ART. 595 DO CC. INAPLICABILIDADE. RESTITUIÇÃO. NÃO CABIMENTO. JUROS REMUNERATÓRIOS. LEI DE USURA. NÃO INCIDÊNCIA (SÚMULA 596 DO STF). ABUSIVIDADE. INEXISTÊNCIA. TAXA MÉDIA DO MERCADO. OBSERVÂNCIA. DANO MORAL. INOCORRÊNCIA.  

1. As disposições do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) são aplicáveis aos contratos com instituições financeiras, consoante intelecção dos artigos 2° e 3° do mencionado instrumento normativo. 

2. Segundo se infere dos arts. 3º e 4º do Código Civil, o analfabetismo e a idade avançada não são, por si só, causas de incapacidade civil. Assim, no caso, a condição de analfabeta da contratante não tem o condão de afastar a capacidade de praticar sozinha os atos da vida civil, o que inclui a possibilidade de contratar. 

3. Reconhecida a capacidade das partes e observando-se a presença dos demais requisitos necessários à validade do negócio jurídico, como objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei, segundo determina o art. 104 do Código Civil, não há que se falar em nulidade do contrato de empréstimo celebrado por pessoa analfabeta. 

4. Ainda que se trate de contratante analfabeta, para formalização do contrato de mútuo, a Lei Civil não exige instrumento público ou particular.  

5. Não cabe aplicação das formalidades constantes no art. 595 do Código Civil, relativas à assinatura a rogo e instrumento subscrito por duas testemunhas, porquanto trata de exigência específica do contrato de prestação de serviços, enquanto o caso é relativo à celebração de mútuo.  

6. Não há que se falar em restituição de valores à autora, quer na forma simples ou em dobro, visto que tal medida importaria em autorizar o enriquecimento sem causa da parte, pois demonstrado que o valor emprestado foi devidamente creditado na conta corrente da contratante, que dele usufruiu, o que implica reconhecer como corretos os descontos realizados. 

7. Embora seja inaplicável ao sistema financeiro nacional a limitação de juros prevista na Lei de Usura (Súmula 596/STF), é cabível a redução dos juros remuneratórios desde que haja comprovação de abusividade da taxa pactuada, o que não restou demonstrado nos autos. 8. Apelação conhecida e não provida.” (Acórdão 1157304, 07090726220188070003, Relator: SIMONE LUCINDO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 13/3/2019, publicado no DJE: 19/3/2019 

APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS E PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA PARA CANCELAMENTO DE DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. NEGATIVA DE CONTRATAÇÃO. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. PROVA DA ORIGEM DA DÍVIDA. CONTRATO FIRMADO POR ANALFABETO. ASSINATURA DE DUAS TESTEMUNHAS, SENDO UMA DELAS LANÇADA PELO COMPANHEIRO DA AUTORA. VALIDADE DA PACTUAÇÃO. LICITUDE DOS DESCONTOS EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO IMPROCEDENTE.  

1. DIANTE DA NEGATIVA DA PARTE AUTORA QUANTO À CONTRATAÇÃO QUE TERIA GERADO O DÉBITO EM DISCUSSÃO JUNTO À DEMANDADA, CABIA A ESTA COMPROVAR A RELAÇÃO CONTRATUAL, ÔNUS DO QUAL SE DESINCUMBIU A CONTENTO, ATENDENDO AO QUE DISPÕE O ART. 373, II, DO CPC. 

2. CASO CONCRETO EM QUE O CONTRATO DE CRÉDITO DIRETO AO CONSUMIDOR FOI CELEBRADO POR PESSOA ANALFABETA, COM ASSINATURA DE DUAS TESTEMUNHAS, SENDO UMA DELAS LANÇADA PRO SEU COMPANHEIRO. EVIDÊNCIA DE QUE, A DESPEITO DA ACENTUAÇÃO DA VULNERABILIDADE DA CONSUMIDORA, FACE AO ANALFABETISMO, FOI PRESTADO AUXÍLIO POR PESSOA CONHECIDA E DA SUA CONFIANÇA, QUE LHE PÔDE ESCLARECER AS CIRCUNSTÂNCIAS DO NEGÓCIO. NESSE CENÁRIO ESPECÍFICO, DESARRAZOADA A EXIGÊNCIA POR INSTRUMENTO PÚBLICO OU POR INSTRUMENTO PARTICULAR ASSINADO A ROGO PARA A VALIDADE DO PACTO. ART. 595 DO CC. CONTRATO EXISTENTE E VÁLIDO.  

3. COMPROVADA A EXISTÊNCIA E VALIDADE DA CONTRATAÇÃO DE EMPRÉSTIMOS COM AUTORIZAÇÃO PARA DESCONTO EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO, NÃO HÁ FALAR EM REPETIÇÃO DE INDÉBITO, DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DO DÉBITO E, TAMPOUCO, EM INDENIZAÇÃO A TÍTULO DE DANO MORAL, UMA VEZ QUE A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA AGIU EM EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO. 

4. SENTENÇA REFORMADA PARA JULGAR IMPROCEDENTE A AÇÃO. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível, Nº 50061255320198210039, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em: 27-04-2022) 

Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça também se pronunciou no mesmo sentido: 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA. RESTITUIÇÃO DE INDÉBITO. CONTRATO DE EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. IDOSO E ANALFABETO. VULNERABILIDADE. REQUISITO DE FORMA. ASSINATURA DO INSTRUMENTO CONTRATUAL A ROGO POR TERCEIRO. PRESENÇA DE DUAS TESTEMUNHAS. ART. 595 DO CC/02. ESCRITURA PÚBLICA. NECESSIDADE DE PREVISÃO LEGAL. 

 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 

2. Os analfabetos podem contratar, porquanto plenamente capazes para exercer os atos da vida civil, mas expressam sua vontade de forma distinta. 

3. A validade do contrato firmado por pessoa que não saiba ler ou escrever não depende de instrumento público, salvo previsão legal nesse sentido. 

4. O contrato escrito firmado pela pessoa analfabeta observa a formalidade prevista no art. 595 do CC/02, que prevê a assinatura do instrumento contratual a rogo por terceiro, com a firma de duas testemunhas. 5. Recurso especial não provido. (REsp nº 1.954.424/PE, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 14.12.2021) 

Considerando a multiplicidade de ações versando sobre o tema, o STJ entendeu por afetar à Segunda Seção como recurso repetitivo, nos autos do REsp 1.943.178/CE, a seguinte discussão “Validade (ou não) da contratação de empréstimo consignado por pessoa analfabeta, mediante instrumento particular assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas”. 

Com base nos elementos materiais – regras claras na legislação e entendimento pacífico na doutrina – e factuais – não há acréscimo de segurança com a exigência de formalidade adicional -, espera-se que o entendimento a ser emanado pelo STJ seja no sentido de reconhecer que não há exigência legal (ou consistência jurídica em construções argumentativas) para que os contratos firmados com analfabetos se deem por meio de instrumento público, na medida em que analfabetos são plenamente capazes para todos os atos da vida civil. 

A conferir quando o recurso representativo da controvérsia for julgado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. 

[1] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense. 1982. p. 219. 

[2] Novo Código Civil Comentado/Coordenação Ricardo Fiuza – 4ª ed. Atualizada – São Paulo, Saraiva:2005. p. 

Autores: Ricardo Sturzenegger e Lívia Fortes

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