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Flexibilização excepcional da regra da impenhorabilidade de salário para pagamento de dívida não alimentar sob a ótica da Corte Especial do STJ
Sabe-se que o texto do atual Código de Processo Civil (que entrou em vigor em 18/03/2016) buscou ajustar a execução – e todas as medidas que a circunda – a fim de garantir a sua efetividade, a exemplo das medidas típicas e atípicas que o magistrado pode adotar para o cumprimento do comando jurisdicional que intima para o pagamento.
Todavia, ainda remanescem algumas medidas assecuratórias ao devedor, como é o caso do rol do artigo 833 do Código de Processo Civil que prevê situações em que determinados bens não poderão ser objetos de penhora, dentre eles se insere a regra de impenhorabilidade de salário e seus congêneres.
Não se escusa da boa intenção do legislador ao prever que não se pode penhorar os vencimentos, sob pena do devedor perecer na vida, já que estaria desprovido de condições materiais que lhe garanta a própria subsistência, bem como das pessoas de seu núcleo familiar que dependeriam daqueles valores. Inclusive essa ideia cumpriria o primado da dignidade da pessoa humana e da manutenção da vida insculpido na Constituição Federal de 1988 e reverberado em todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, a doutrina bem observa que a execução deverá ser balanceada, uma vez que poderá haver concurso de direitos do exequente e do executado:
Essa concepção de tutela jurisdicional, evidentemente, visualiza o processo apenas sob o ponto de vista do demandante. Mas isso não exclui que se possa ver também o executado como merecedor da tutela jurisdicional, na medida em que se deve buscar, na execução, satisfazer o direito pleiteado do modo que lhe seja menos gravoso (cf.. p. ex., CPC/2015, art. 805). Desse modo, haverá o executado de suportar a execução, mas poderá empenhar-se no sentido de que lhe seja menos prejudicial, podendo, deste modo, valer-se dos meios processuais colocados à sua disposição para tanto. Também aquele contra quem a demanda é apresentada tem direito de ação, isso é, direito ao processo adequado, que observe as garantias mínimas do devido processo legal.1
A exceção à regra da impenhorabilidade de salários ocorre quando o executado ostenta altos salários, precisamente aqueles vencimentos que excederem 50 (cinquenta) salários-mínimos, independentemente da natureza da verba executada. Cumpre salientar, ainda, que outras exceções podem perpassar a regra da impenhorabilidade, como a execução de alimentos.
Não se nega que houve um avanço legislativo com a possibilidade de penhora do salário acima do teto supramencionado, mas verifica-se que a limitação destoa da realidade brasileira, sendo deveras desproporcional, uma vez que o intuito é a preservação do “mínimo existencial” previsto na Constituição Federal. Nesse sentido, o legislador poderia deixar a cargo do magistrado a verificação do quantum a ser considerado impenhorável, a partir dos elementos do caso concreto, considerando o meio que o circunda, a região econômica em que está inserido e outras considerações plausíveis pautadas nos princípios constitucionais e infraconstitucionais que norteiam o processo de execução, notadamente a razoabilidade e a proporcionalidade, conjugando o mínimo existencial com o mínimo comprometimento da efetividade da execução.
A prática forense revela a existência de abusos na utilização da regra de impenhorabilidade, servindo, em alguns casos, como subterfúgio para que o mau pagador não seja responsabilizado patrimonialmente, retirando a própria efetividade da execução.
As discussões que permeiam a impenhorabilidade de salário desaguam diariamente nas execuções e cumprimentos de sentença em trâmite no Poder Judiciário, inclusive questionando a rigidez da regra, justamente pela utilização deturpada dessa proteção ao devedor.
Nesse contexto, diversos recursos chegaram até o Superior Tribunal de Justiça com esse questionamento, até que, em sede de embargos de divergência (EREsp nº 1874222/DF), a Corte Especial admitiu a relativização da impenhorabilidade do salário para o pagamento de dívida não alimentar, como veremos a seguir.
O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ocorrido em sua Corte Especial, interpretou a regra insculpida no artigo 833, inc. IV do Código de Processo Civil, nos autos do EREsp nº 1874222/DF, relativizando a impenhorabilidade de salário para pagamento de dívida não alimentar.
Advindo de processo originário do Distrito Federal, o caso sub judice é uma execução de título executivo extrajudicial em que exequente e executado são pessoas naturais. Reconhecida a certeza, liquidez e exigibilidade, travou-se embate jurídico acerca da (im)penhorabilidade de salário nesse caso em que a dívida não é alimentar.
Após tentativas que, segundo o exequente, exauriram todos os meios possíveis para a satisfação de seu crédito, inclusive com penhora de imóvel – desconstituída posteriormente com fundamento em bem de família, requereu o deferimento de penhora e a consequente expedição de ofício ao Banco Central do Brasil (órgão em que o executado desempenha suas atividades profissionais) para que descontasse diretamente os valores de sua folha de pagamento no limite de 30% sobre os vencimentos, a fim de garantir a subsistência do devedor.
Sobreveio decisão de indeferimento da medida pleiteada, sob o fundamento da impenhorabilidade de salários até 50 salários-mínimos. O exequente interpôs agravo de instrumento e o Tribunal de origem entendeu que as verbas de natureza salarial são de caráter absoluto, sendo inatingíveis, negando provimento ao recurso.
O recurso especial, interposto em face do acórdão, teve seu provimento negado monocraticamente sob o fundamento de que o caso específico não se amoldava às exceções fixadas pela jurisprudência da Corte, o que desafiou a interposição de agravo interno. O recurso foi desprovido pela Quarta Turma e, posteriormente, foram rejeitados os embargos de declaração opostos contra o acórdão que julgou o agravo interno.
Verificada a divergência de entendimentos, a parte embargante opôs embargos de divergência alegando que o Tribunal de origem fundamentou a negativa de penhora no percentual de 30% sobre o salário, tão somente, afirmando que o pedido não se enquadrava nas exceções legais, sem observar se haveria “qualquer comprometimento à subsistência digna do devedor”.
Ademais, a embargante afirmou que a ratio decidendi dos paradigmas colacionados ao recurso afastaram o “caráter absoluto da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial apenas ao resguardo de percentual suficiente para subsistência digna do devedor e de sua família, independentemente da natureza da dívida”, isto é, admitindo-se a possibilidade de verificação se o valor atingido pelo bloqueio – ou no caso sub judice pela penhora de um percentual diretamente na folha salarial – resultaria no comprometimento à subsistência do devedor.
O Ministro Relator, ao julgar o caso, observa que nas decisões apresentadas como paradigma há o “raciocínio jurídico […] que assegure o equilíbrio entre o direito do credor à satisfação de seu crédito e o direito do devedor a responder pelo débito com a preservação de sua dignidade”, no sentido de que a regra da impenhorabilidade deve ser adstrita ao patrimônio do devedor que seja efetivamente necessário para sua subsistência e a garantia do mínimo existencial, à sua dignidade e a das demais pessoas que dele dependam.
Avançando, o Ministro analisa o acórdão embargado em que há a afirmação de que a única exceção à impenhorabilidade das verbas de natureza salarial são aquelas ligadas às prestações alimentícias, independentemente do valor, ao passo de que as execuções de dívidas não alimentares estão vinculadas à regra da impenhorabilidade de verbas salariais até 50 salários-mínimos.
Lastreado nessas premissas, identificou-se a divergência como sendo as aplicadas às dívidas de natureza não alimentar e que
consiste em definir se a impenhorabilidade está condicionada apenas à garanti do mínimo necessário para a subsistência digna do devedor e de sua família ou, se, além disso, há que ser observado o limite mínimo de 50 salários-mínimos recebidos pelo devedor2
Lembra o Relator que, cotejando o CPC de 2015 com o de 1973, verifica-se que houve a supressão do termo “absolutamente” do caput do artigo que trata sobre a impenhorabilidade (art. 833, do atual Código de Processo Civil), alteração que indica a mudança de entendimento legislativo que passou a tratar a impenhorabilidade como relativa, permitindo que o magistrado, à luz dos princípios constitucionais e processuais atinentes, possa conceder tutela jurisdicional mais adequada, conjugando especialmente os princípios da menor onerosidade e o da efetividade da execução, sempre com vistas à dignidade da pessoa humana (que protegerá exequente e executado – em se tratando de pessoas naturais).
Criticou, ainda, a fixação do limite de 50 salários-mínimos, uma vez que não dialoga com a realidade brasileira, “tornando o dispositivo praticamente inócuo”, bem como destoa da intenção de preservar ou manter reserva digna para o devedor e sua família.
Concluindo pela relativização da impenhorabilidade de salário abaixo do limite supramencionado, o Relator dispôs em seu voto:
Portanto, mostra-se possível a relativização do § 2ºdo art. 833 do CPC/2015, de modo a se autorizar a penhora de verba salarial inferior a 50 salários-mínimos, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família. Nesse sentido, vem decidindo este Superior Tribunal de Justiça […]
Assim, merecem provimento os presentes embargos de divergência para se adotar a tese constante dos precedentes invocados, no sentido da possibilidade de relativização da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívidas de natureza não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado montante que assegura sua subsistência digna e de sua família.3
O julgamento implica importante reconhecimento do avanço legislativo no processo de execução, ao passo que conjuga os princípios da menor onerosidade com a efetividade da execução, de modo a não esvaziar a finalidade do processo executivo – a concretização da pacificação social – e, por outro lado, não significar o arruinamento do devedor com o atingimento da ultimação de seu patrimônio, garantindo-lhe o mínimo de subsistência.
Evidentemente que a interpretação da norma ocorre em abstrato – assim como no processo analisado, em que fora determinada a remessa à origem, a fim de que se verificasse no caso concreto o impacto da penhora -, de maneira que o magistrado terá à sua disposição substrato legal para avaliar a proporção e a razoabilidade da penhora sobre o salário e seus congêneres, avaliando a oportunidade (se esse é o único meio restante para alcançar a satisfação da execução), o grau de interferência na subsistência do devedor, ocasião em que este poderá apresentar provas que revelem sua condição econômica e financeira, bem como – e por outro lado – a efetividade da execução, sendo resguardado, inclusive, os princípios do contraditório e da ampla defesa nessa fase do processo.
Autor: Bruno Morais Di Santis