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Configuração da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária e o envio de notificação extrajudicial ao endereço do devedor indicado no instrumento contratual
Em maio de 2022, o Superior Tribunal de Justiça afetou para julgamento sob o rito do art. 1.036 do CPC recurso que envolve a comprovação da mora para a execução de crédito decorrente de alienação fiduciária, na forma como prevista no Decreto-Lei nº 911/69 (REsp nº 1.951.888/RS – tema 1132).
Na decisão de afetação delimitou-se a controvérsia da seguinte forma: “Definir se, para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente, ou não, o envio de notificação extrajudicial ao endereço do devedor indicado no instrumento contratual, dispensando-se, por conseguinte, que a assinatura do aviso de recebimento seja do próprio destinatário”.
A análise da tese exige, portanto, a definição dos critérios para a configuração da mora do devedor e a forma de sua comprovação, que estão previstas no art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911/69:
Art. 2º. No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de contas.
(…)
§ 2º A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário.
Como se verifica, a própria dicção legal é expressa ao afastar a exigência de que a assinatura da notificação seja do próprio devedor, bastando que o documento seja enviado ao seu endereço.
Com efeito, a legislação é clara ao estabelecer que a mora decorre do próprio vencimento, ou seja, constitui-se ex re. Nessa perspectiva, a notificação cumpre a função de conferir ao devedor a oportunidade de purgar a mora antes do ajuizamento da ação reintegrativa, na qual o bem é retomado sem a previa oitiva da parte ré.
Essa dinâmica afasta a necessidade de intimação pessoal do devedor, na medida em que a notificação extrajudicial prévia à propositura da ação já constitui medida suficiente de salvaguarda anterior à propositura da ação.
A jurisprudência do STJ sempre foi pacífica nesse sentido, como se verifica dos seguintes precedentes:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE DEMANDADA.
1. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a prova do recebimento da notificação pelo devedor não é necessária para a constituição em mora, bastando que seja enviada ao endereço declinado no contrato (AgInt no AREsp 1125547/RS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 21/03/2019, DJe 28/03/2019). Incidência da Súmula 83/STJ. Precedentes.
2. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp 1937142/SC, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 29/11/2021, DJe 01/12/2021).”
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DO STJ. SÚMULA N. 182 DO STJ. RECONSIDERAÇÃO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. BUSCA E APREENSÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. PERSUASÃO RACIONAL. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL. VALIDADE. MORA DO DEVEDOR CARACTERIZADA. SÚMULA N. 83/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADO. COTEJO ANALÍTICO. AUSÊNCIA. AGRAVO INTERNO PROVIDO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. O recurso especial não comporta exame de questões que impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos (Súmula n. 7 do STJ).
2. O CPC/2015, em seus artigos 370 e 371, manteve o princípio da persuasão racional, reafirmando que compete ao magistrado dirigir a instrução probatória. Assim, cabe ao juiz (sempre em decisão fundamentada): (i) determinar, até mesmo de ofício, a produção das provas que entender necessárias ao julgamento de mérito, (ii) rejeitar as diligências inúteis ou protelatórias, e (iii) apreciar a prova, indicando os motivos de seu convencimento.
3. Conforme a jurisprudência desta Corte, nos pedidos de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, é dispensável a notificação pessoal do devedor para comprovação de sua mora, bastando, para tanto, a entrega de notificação extrajudicial em seu endereço.
4. “Por um lado, a própria redação atual do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969 é expressa a respeito de que a mora decorre do simples vencimento do prazo para pagamento. Por outro lado, conforme a atual redação do mencionado dispositivo, promovida pela Lei n. 13.043/2014, o entendimento até então consagrado pela jurisprudência do STJ, acerca da necessidade de notificação via cartório, foi considerado, por própria opção do legislador, formalidade desnecessária” (REsp n. 1.292.182/SC, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 29/09/2016, DJe 16/11/2016).
5. Inadmissível o recurso especial quando o entendimento adotado pelo Tribunal de origem coincide com a jurisprudência do STJ (Súmula n. 83 do STJ).
6. O conhecimento do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional exige a indicação do dispositivo legal ao qual foi atribuída interpretação divergente e a demonstração dessa divergência, mediante a verificação das circunstâncias que assemelhem ou identifiquem os casos confrontados, sendo insuficiente a mera transcrição de ementas para configuração do dissídio.
7. Agravo interno a que se dá provimento para reconsiderar a decisão da Presidência desta Corte e negar provimento ao agravo nos próprios autos.
(AgInt no AREsp 1863716/PR, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 20/09/2021, DJe 23/09/2021)
Por outro lado, a jurisprudência do STJ também sempre considerou irrelevante, para efeito de comprovação da mora, o fato de a notificação ter sido recebida por terceiro ou ter retornado por motivo de mudança. Em atenção à boa-fé que rege as relações contratuais, entende-se que cabe ao contratante manter atualizado o seu endereço junto ao credor. Confira-se nesse sentido o seguinte julgado de relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DL 911/69. CONSTITUIÇÃO EM MORA. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL. AVISO DE RECEBIMENTO (AR) COM INFORMAÇÃO DE QUE O DEVEDOR MUDOU-SE. COMPROVAÇÃO DO RECEBIMENTO PESSOAL. DESNECESSIDADE. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. INDEVIDA.
1. Ação de busca e apreensão da qual se extrai este recurso especial, interposto em 16/5/19 e concluso ao gabinete em 1º/8/19.
2. O propósito recursal consiste em definir se é imprescindível a comprovação simultânea do encaminhamento de notificação ao endereço constante no contrato e do seu recebimento pessoal, para a constituição do devedor em mora nos contratos de alienação fiduciária.
3. O prévio encaminhamento de notificação ao endereço informado no contrato pelo Cartório de Títulos e Documentos é suficiente para a comprovação da mora, tornando-se desnecessário ao ajuizamento da ação de busca e apreensão que o credor fiduciário demonstre o efetivo recebimento da correspondência pela pessoa do devedor.
4. O retorno da carta com aviso de recebimento no qual consta que o devedor “mudou-se” não constitui, por si só, fundamento para dizer que não foi constituído em mora.
5. A bem dos princípios da probidade e boa-fé, não é imputável ao credor fiduciário a desídia do devedor que deixou de informar a mudança do domicílio indicado no contrato, frustrando, assim, a comunicação entre as partes.
6. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem extinguiu o processo sem resolução de mérito, por ausência de comprovação da mora para o ajuizamento da ação de busca e apreensão, sob o fundamento de o AR constar a mudança do devedor. Esse entendimento não se alinha à jurisprudência do STJ.
7. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1828778/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 29/08/2019)
O próprio acórdão de afetação do recurso repetitivo do tema 1132, por seu turno, indicou a solidez da jurisprudência do STJ sobre a matéria, ao destacar que:
os referidos julgados ora destacados corroboram a compreensão acerca da maturidade do entendimento desta Corte Superior a respeito da matéria, de modo a demonstrar que a matéria já foi suficientemente discutida e consta examinada pelos membros componentes desta e. Segunda Seção, pelo que a afetação dessa controvérsia vem ao encontro da noção de efetividade da Justiça, em decorrência lógica dos efeitos advindos do julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos.
Com base nessas premissas, a Segunda Seção do STJ, em julgamento ocorrido em agosto de 2023, manteve a jurisprudência do Tribunal, tendo definido a seguinte tese repetitiva para o Tema 1.132: “Para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente o envio de notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no instrumento contratual, dispensando-se a prova do recebimento, quer seja pelo próprio destinatário, quer por terceiros.”
Autores: Lívia Fortes e Ricardo Sturzenegger