Blog
Filtro por categoria
Aspectos sobre a flexibilização da impenhorabilidade do bem de família de alto valor
O regime geral do bem de família e sua impenhorabilidade
O regime jurídico brasileiro adota como regra a responsabilização patrimonial, o que significa que, em regra, o devedor responde por suas dívidas com todo o seu patrimônio.
Nesse sentido, o art. 391 do Código Civil de 2002 prevê que “pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”. Por sua vez, o art. 789 do Código de Processo Civil de 2015 dispõe que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
Dentre as exceções ou restrições estabelecidas em lei para a regra da responsabilidade patrimonial, encontra-se o bem de família, que, segundo Caio Mário da Silva Pereira, foi inspirado na legislação norte-americana, que previa o instituto do homestead, o qual “era definido como uma porção de terra pertencente aos chefes de família protegida contra a alienação judicial forçada, por quaisquer débitos contraídos por seu proprietário posteriormente à aquisição da propriedade” [1].
Segundo Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, a teoria do direito ao patrimônio mínimo levou ao entendimento de que “institutos antes vocacionados, exclusivamente, à garantia do crédito são renovados, rejuvenescidos, e utilizados na proteção da pessoa humana, como um aspecto essencial para o reconhecimento de sua dignidade” e citam, como exemplo, o bem de família [2].
O regime geral do bem de família foi introduzido na lei brasileira pelo Código Civil de 1916 e, atualmente, se mostra regulado pelo Código Civil de 2002, que prevê no seu art. 1.711 que “podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”.
No regime do Código Civil de 2002, o bem de família é instituído de forma voluntária, mas a Lei nº. 8.009, de 1990, já previa o bem de família legal e sua impenhorabilidade, que não foi revogado pela entrada em vigor do Código Civil, já que este prevê em seu art. 1.711 a manutenção “das regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”.
Segundo dispõe o art. 832 do Código de Processo Civil de 2015, “não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis” e as leis que versam sobre o bem de família (o Código Civil de 2002 e a Lei nº. 8.009, de 1990) preveem a sua impenhorabilidade, como regra.
Como se vê, a legislação em vigor não estipula expressamente qualquer limitação do valor monetário ou econômico do bem imóvel para que ele seja considerado bem de família e, portanto, impenhorável. Surgiu, contudo, especialmente na jurisprudência, um movimento que passou a relativizar a impenhorabilidade do bem de família de alto valor ou alto padrão.
A mitigação da impenhorabilidade do bem de família de alto valor pela jurisprudência
Especialmente perante o Poder Judiciário, a impenhorabilidade do bem de família passou a ser questionada em determinadas situações concretas como, por exemplo, na hipótese em que o imóvel possui alto valor.
Alguns tribunais e juízes passaram a adotar o posicionamento de que, excepcionalmente, seria possível a penhora de bem de família de alto valor, mediante exercício de ponderação entre a preservação do patrimônio mínimo, a dignidade humana do devedor e a tutela do credor e a garantia do acesso à Justiça.
A título de exemplo, a Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, em abril de 2024, proferiu acórdão entendendo pela possibilidade de penhora de bem de família de alto valor, na hipótese em que com a diferença entre o valor do imóvel e o valor da dívida seja suficiente para a aquisição de outro imóvel de padrão semelhante, uma vez que se prestigiaria o crédito trabalhista sem violação da proteção da moradia e do patrimônio mínimo [3].
A Décima Sétima Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em março de 2022, também proferiu acórdão entendendo pela possibilidade de relativização da garantia da impenhorabilidade do bem de família, mediante ponderação dos princípios constitucionais do direito de moradia e da valorização do trabalho humano, ambos pautados no princípio da dignidade da pessoa humana. O órgão julgador concluiu que a penhora preserva o direito ao crédito trabalhista, de natureza alimentar, sem prejuízo à moradia, uma vez que restaria montante suficiente para que o devedor adquira imóvel de padrão similar [4].
No âmbito da Justiça Estadual, a Décima Sexta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, diante de caso concreto semelhante, também entendeu, mediante juízo de ponderação dos princípios constitucionais do direito de ação, razoável duração do processo, razoabilidade e proporcionalidade, pela possibilidade de penhora de bem imóvel de alto valor, desde que se reserve ao devedor valor condizente com sua situação social, que lhe permita a aquisição de outro imóvel para moradia com dignidade [5].
Em um outro caso, a Trigésima Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu pela penhorabilidade de imóvel de vultoso valor, sob o fundamento de que a alienação do imóvel permitiria “a aquisição de imóvel de proporções e valor mais condizentes com a atual situação financeira do devedor”. Concluiu que metade do produto alcançado com a alienação do imóvel deveria ser revertida em proveito do devedor para a aquisição de outro imóvel [6].
Para além do Poder Judiciário, vê-se que esse também é um tema que desperta o interesse do Poder Legislativo.
Proposta legislativa de atualização do Código Civil no que diz respeito ao bem de família de alto valor
Houve ao menos dois momentos em que o Congresso Nacional discutiu a relativização da impenhorabilidade do bem de família de alto valor. Pretendeu-se estabelecer parâmetros objetivos para classificar imóveis como sendo “de alto valor”, bem como delimitar o valor do imóvel que seria protegido pela impenhorabilidade.
O Projeto de Lei da Câmara nº. 51, de 2006 (Projeto de Lei nº. 4.497, de 2004, na Câmara dos Deputados), que alterou dispositivos do Código de Processo Civil de 1973, incluía dispositivo que permitia a penhora de bem imóvel de família de valor superior a mil salários-mínimos, sendo entregue ao devedor a quantia até esse limite, sob cláusula de impenhorabilidade. Contudo, tal dispositivo foi objeto de veto presidencial [7].
No projeto original que resultou na edição da Lei nº. 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil de 2015), o Projeto de Lei n.º 8.046, de 2010, foi apresentada a Emenda nº. 358, de autoria do Deputado Federal Júnior Coimbra, que também sugeria a inclusão de dispositivo cuja redação limitava a impenhorabilidade do bem de família a mil salários-mínimos. A emenda, contudo, não foi aprovada [8].
A justificativa apresentada para a Emenda nº. 358 foi a de que a redação proposta “impedirá que devedores abastados se valham do imóvel de família em situação de abuso de direito”. Ademais, indicou que “já há jurisprudência que afasta a impenhorabilidade do imóvel suntuoso, pois a ideia é garantir que haja um patrimônio mínimo razoável capaz de garantir ao devedor e a sua família a manutenção de sua dignidade”.
A discussão voltou à tona no ano 2024, uma vez que é objeto de debates no projeto de revisão e atualização do Código Civil de 2002, que se iniciou mediante a instituição de Comissão de Juristas pelo Ato do Presidente do Senado Federal n° 11, de 2023, comissão essa presidida pelo Ministro Luís Felipe Salomão.
A redação do anteprojeto, em seu art. 391-A, § 3º, dispõe que “a casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família”.
Referido dispositivo da proposta de atualização do Código Civil é inovador no ordenamento jurídico e, se aprovado, estipulará limitação objetiva do valor do imóvel que ainda estaria protegido pela impenhorabilidade (metade do valor do imóvel).
Contudo, o dispositivo não define parâmetros objetivos para classificar determinado imóvel como sendo “de alto padrão”, bem como não esclarece qual referência deverá ser utilizada para estimar ou calcular o “preço de mercado do bem”.
De todo modo, essa ausência de parâmetros objetivos, ao menos em tese, permitiria maior adequação do dispositivo às diversidades regionais e locais do território brasileiro e evitaria o anacronismo que poderia ocorrer sobre tais parâmetros no decorrer do tempo.
Se o dispositivo for aprovado com a redação proposta, restará, então, ao trabalho dos magistrados conferir-lhe interpretação razoável, de modo a delimitar o que será entendido como imóvel de “alto padrão”, de forma sensível às circunstâncias de cada caso concreto.
Autor: João Paulo Sousa Mendes
Referências bibliográficas
[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. V. Direito de Família. 22. ed. rev e atual. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2014.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume Único. 3. ed. rev, atual. e ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. p. 492
[3] AGRAVO DE PETIÇÃO DO EXEQUENTE. BEM DE FAMÍLIA DE ELEVADO VALOR. VALIDADE DA PENHORA. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. É possível a penhora de imóvel bem de família quando o seu valor é elevado, o suficiente para permitir ao executado, com o excesso da quantia obtida na alienação após a quitação do débito trabalhista, a aquisição de outro imóvel de patamar equivalente. A mitigação da garantia legal de impenhorabilidade do bem de família se dá em prestígio ao crédito trabalhista, sem violar a proteção constitucional à moradia do executado. Válida, então, a penhora que recai sobre o bem imóvel objeto da controvérsia. Agravo provido. (TRT-1 – Agravo de Petição n.º 0100567-59.2021.5.01.0031, Rel. Desembargadora Mônica Batista Vieira Puglia, Terceira Turma, DEJT 2024-04-22)
[4] BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DE ELEVADO VALOR. PENHORA. POSSIBILIDADE. A Lei 8.009/90 tem por finalidade garantir a moradia da família, em atenção aos princípios da dignidade da pessoa humana e ao direito fundamental à moradia, ambos insculpidos nos artigos 1º, III e 6º, da Constituição Federal. Contudo, quando não há notícia nos autos acerca de outro bem passível de penhora, apto a satisfazer o crédito exequendo, após exaustivas tentativas do credor em vê-lo adimplido e tratando-se de imóvel de alto valor utilizado como moradia pelos executados, deve ser aplicado o método da ponderação de princípios constitucionais, devendo ser preservado o direito da exequente ao crédito trabalhista, de natureza alimentar, especialmente diante da possibilidade de satisfação de seu crédito sem prejuízo da sobra de montante suficiente para que os executados adquiram imóvel de padrão similar. Agravo de Petição dos executados a que se nega provimento. (TRT da 2ª Região; Processo: 0228600-47.2007.5.02.0058; Data de assinatura: 31-03-2022; Órgão Julgador: 17ª Turma – Cadeira 5 – 17ª Turma; Relator(a): MARIA DE FATIMA DA SILVA)
[5] AGRAVO DE INSTRUMENTO. BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DE VALOR VULTOSO. PENHORA. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL. RESERVA DE PARTE DO VALOR AO DEVEDOR. NECESSIDADE. VALOR QUE DEVE SER GRAVADO COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE. PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO E DA DIGNIDADE HUMANA DO DEVEDOR. 1.- A interpretação sistemática e teológica do art. 1º da Lei nº 8.009/90, mediante ponderação dos princípios constitucionais que informam a impenhorabilidade do bem de família e garantem o direito de ação com duração razoável do processo, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, permite a penhora de imóvel de valor vultoso, ainda que destinado à moradia do devedor. 2.- A penhora de bem de família de valor vultoso, no entanto, exige que se reserve ao devedor valor condizente com sua situação social, visando a possibilitar-lhe a aquisição de outro imóvel para morar com dignidade. 3.- A reserva de parte do produto da alienação do imóvel penhorado deve ser gravada com cláusula de impenhorabilidade, visando a dar cumprimento ao disposto no art. 1º. da Lei nº 8.009/90, conforme sua interpretação conforme à Constituição Federal. 4.- Decisão reformada. Agravo parcialmente provido. (TJSP, AI nº 2075933-13.2021.8.26.000, Rel. Des. Ademir Modesto de Souza, 16ª Câmara de Direito Privado, julgado em 8.6.2021).
[6] EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE DA EMPRESA DEVEDORA JÁ DECRETADA – IMÓVEL DO SÓCIO – BEM DE FAMÍLIA – APARTAMENTO DE LUXO. Muito embora o devedor comprove residir no imóvel cujos direitos foram penhorados, não havendo indício de que tenha outro bem disponível para constrição, a impenhorabilidade legal deve ser mitigada. Imóvel de luxo e alto padrão, cujo valor de mercado é consideravelmente superior ao valor da dívida. Penhora que deve ser mantida levando-se o imóvel à hasta pública, devendo, contudo, metade do produto alcançado ser revertida em proveito do devedor, a fim de que possa adquirir outro imóvel para albergar a si e a sua família. A outra metade deve permanecer retida nos autos, para fins de quitação do débito perseguido. RECURSO PROVIDO EM PARTE. (TJSP, AI nº 2074639-28.2018.8.26.0000, Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti, 30ª Câmara de Direito Privado, julgado em 20.6.2018).
[7] “Art. 650. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia.
Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a mil salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao devedor, sob cláusula de impenhorabilidade.”.
[8] Art. 790. São absolutamente impenhoráveis: […] “XII – o bem imóvel de residência do devedor e sua família até o limite de 1000 salários mínimos”.