A regra geral aplicada às novas leis promulgadas no ordenamento jurídico brasileiro é a da irretroatividade, em razão da previsão do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Embora seja um princípio fundamental, a irretroatividade não é um princípio absoluto. Existem exceções, como, por exemplo, no âmbito do Direito Penal, em que é possível a retroatividade de novas normas caso seja para beneficiar o réu, conforme expressa previsão no inciso XL, do art. 5º, da Constituição Federal.
Entende-se, portanto, que a vedação absoluta da retroatividade de novas normas somente se dá em relação aos direitos adquiridos, ao ato jurídico perfeito e, principalmente, à coisa julgada.
Inclusive, a possibilidade de retroatividade de novas leis também aparece no Pacto de San José da Costa Rica, em seu art. 9º, o qual prevê que “se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado”. Nesse caso, não há restrição à aplicação somente no Direito Penal.
Com fundamento nesse artigo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso López Lone e outros vs. Honduras, entendeu que as garantias previstas no referido dispositivo do Pacto de San José da Costa Rica devem ser aplicadas no âmbito do Direito Administrativo Sancionador ao equiparar os efeitos de processos disciplinares aos de processos penais, tendo em vista que atingem os mesmos direitos fundamentais (OSÓRIO, 2023, p. RB-4.2).
Já no Caso Maldonado Ordoñez vs. Guatemala, a Corte entendeu que o previsto no art. 9° do Pacto de San José da Costa deveria ser aplicado contra qualquer exercício do poder punitivo em sentido amplo, não se restringindo apenas à esfera penal (OSÓRIO, 2023, p. RB-4.2).
É evidente que o ordenamento jurídico brasileiro prevê a possibilidade de normas penais mais benéficas retroagirem em benefício do réu, isto é, fazer a norma alcançar fatos que tenham ocorrido sob a égide de uma legislação anterior.
Diante dessa exceção prevista para o Direito Penal, surge a discussão a respeito da possibilidade de extensão dessa situação excepcional, em que se aceita retroatividade de lei mais benéfica, para o Direito Administrativo Sancionador.
Destaca-se que o Direito Administrativo Sancionador é um ramo específico do Direito Administrativo para a regulação de relações disciplinares entre a Administração Pública e os seus servidores, por meio do qual são apuradas as faltas e aplicadas as respectivas sanções (FREITAS, 1999, p. 120).
Diante da natureza punitiva do processo administrativo sancionador, parece estar justificada a aplicação dos pressupostos e dos princípios do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador.
Ambos os ramos decorrem de um ius puniendi, que se distinguem somente em relação aos regimes jurídicos aplicados em conformidade com as respectivas legislações, assemelhando-se quanto aos direitos, garantias e princípios fundamentais aplicáveis (OLIVEIRA; HALPERN, 2021).
Em razão da relação guardada entre as duas áreas do Direito, a retroatividade de norma mais benéfica é possível dentro de um processo administrativo sancionador quando ocorrer para beneficiar o réu.
Inclusive, nesse sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça reconhece a proximidade dos dois ramos do direito e estende a norma do art. 5º, inciso XVIII, da Constituição da República, para o âmbito do direito administrativo sancionador, como é possível extrair, por exemplo, do julgamento do REsp nº 1.153.083/MT (DJE 19.11.2014) e do REsp nº 1.353.267/DF (DJE 25.3.2021).
Vale ressaltar o voto-vista da Ministra Regina Helena Costa, no julgamento do REsp nº 1.153.083/MT, no qual entendeu que “a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal”, sendo acompanhada pela maioria da Turma.
Não há dúvida que parte da doutrina e o entendimento do STJ reforçam a ideia de que há evidente proximidade entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, sendo necessário que seja aplicado ao segundo os princípios constitucionais que amparam o primeiro.
A retroatividade da nova Lei de Improbidade Administrativa à luz do Tema nº 1.199 do Supremo Tribunal Federal
Com a promulgação da nova Lei de Improbidade Administrativa, a Lei nº 14.230/2021, foram retomadas diversas discussões a respeito da possibilidade de retroatividade de novas leis no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.
Isso porque as previsões da lei estabeleceram um novo cenário em que é possível beneficiar o réu, por exemplo, com a extinção da modalidade culposa do ato de improbidade, que deixou de ser prevista.
Com a nova redação dada à legislação, nos termos do art. 1, §2º, da Lei nº 14.230/2021, é exigido que haja dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa, que é conceituado como “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”.
Também é possível destacar a nova regra de prazo prescricional, que passou a ser de cinco anos no lugar dos oito anos previstos na lei anterior, conforme disposto no art. 23 da Lei nº 14.230/2021.
Portanto, fica evidente que essas novas regras podem beneficiar diversos réus que foram processados com fundamento em ato culposo ou dolo genérico, em razão de fatos pretéritos, bem como podem beneficiar réus cujas ações estão prescritas, com fundamento na nova lei.
Diante da inegável conexão entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal, iniciaram-se debates, tanto na esfera acadêmica quanto no âmbito judicial, acerca da possibilidade de retroatividade da nova Lei de Improbidade Administrativa a fatos pretéritos.
Inclusive, tal debate esteve presente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal ao analisar o Projeto de Lei nº 2.505/2021, o qual se referia à nova Lei de Improbidade Administrativa, que analisou a questão da possibilidade da retroatividade das normas previstas (CAVALCANTE FILHO, 2021, p. 16).
Ocorre que foi sugerida a inserção de um dispositivo que previa expressamente a retroatividade das normas. Contudo, o relator do PL afirmou que a disposição seria desnecessária, tendo em vista que a orientação do STJ é no sentido de que a norma mais benéfica deve retroagir para favorecer o réu no âmbito do Direito Sancionador, utilizando como fundamento o julgamento do REsp nº 1.153.083/MT, de relatoria do Ministro Sérgio Kukina (CAVALCANTE FILHO, 2021, p. 16).
A despeito de haver esse entendimento sedimentado no STJ, a discussão quanto à possibilidade de retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/2021 chegou ao Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE nº 843.989, paradigma do Tema nº 1.199 da sistemática da Repercussão Geral, sob Relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
A repercussão geral em questão discutiu, em suma, se as normas inseridas na nova Lei de Improbidade Administrativa devem retroagir para beneficiar aqueles que tenham cometido atos de improbidade na modalidade culposa, bem como quanto aos prazos de prescrição geral e intercorrente.
No julgamento, foram fixadas teses em relação à retroatividade da referida Lei em quatro situações, quais sejam: (i) ato de improbidade culposo com condenação transitada em julgado; (ii) ato de improbidade culposo praticado antes da lei, mas sem condenação transitada em julgado; (iii) prescrição intercorrente; e, (iv) prescrição em geral.
Em relação à primeira situação, os atos de improbidade culposos com condenação transitada em julgado, foi firmado o entendimento de que não há retroatividade, sendo possível destacar o entendimento do Ministro relator Alexandre de Moraes, que afirmou que a nova lei não trouxe nenhuma previsão que permite inferir uma “anistia” para todos que foram condenados com fundamento no art. 10 da lei anterior em seus trinta anos de vigência.
O Ministro Dias Toffoli divergiu quanto a esse ponto por entender que, com fundamento no art. 5°, inciso II, e no art. 37, ambos da Constituição Federal, não seria adequado serem mantidos “os efeitos de uma condenação cujo fundamento foi deliberadamente retirado do ordenamento jurídica pela própria Administração Pública, sob pena de se realizar a aplicação de penas graves, injustas e não isonômicas”, apontando, portanto, a possibilidade de ação rescisória.
Por outro lado, quanto aos atos de improbidade culposos praticados anteriormente à lei, que ainda não possuem condenação transitada em julgado, a maioria entendeu que deverá haver a retroação da norma prevista na nova lei para extinguir as ações que comprovadamente sancionam atos culposos.
Destaca-se o entendimento do Ministro Nunes Marques que, em seu voto-vista, exarou o entendimento da aproximação entre o campo do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador. Portanto, justificou a possibilidade de retroatividade no fato de que “consistindo a modificação da lei em algo que elimina a improbidade culposa, a lei em exame assemelha-se a uma abolitio criminis e como tal deve ser tratada”.
Restaram vencidos acerca dessa questão os Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e as Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia.
Nos termos do voto-vista do Ministro Edson Fachin, acompanhado pelos demais vencidos, não há aproximação entre o campo do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador, uma vez que o primeiro envolve penas privativas de liberdade, razão pela qual merece tratamento distinto. Desse modo, entenderam pela irretroatividade total das novas normas da Lei de Improbidade Administrativa.
No penúltimo ponto, referente à prescrição intercorrente, foi firmada a tese no sentido de que não seria possível a retroatividade, portanto o novo prazo começou a contar a partir da publicação da Lei nº 14.230/2021.
Por fim, em relação à prescrição em geral, a maioria dos Ministros também votou na tese que essa disposição deveria ser irretroativa com o intuito de garantir a eficácia de todos os atos praticados de forma válida anteriormente à promulgação da nova legislação.
Conclusão
A Constituição Federal prevê a irretroatividade de novas leis como a regra no ordenamento jurídico brasileiro, mas também são previstas exceções como, por exemplo, a possibilidade de retroatividade de norma mais benéfica no âmbito do Direito Penal para beneficiar o réu.
Tendo em vista as proximidades entre o ramo do Direito Penal e o ramo do Direito Administrativo Sancionador, por leitura que tome em conta a natureza punitiva do processo administrativo sancionador, muitos reconhecem que seria possível a extensão do princípio da retroatividade da norma mais benéfica em ambas as esferas.
Ao firmar as teses do Tema nº 1.099, o Supremo Tribunal Federal analisou as consequências da retroatividade das normas mais benéficas da Lei de Improbidade Administrativa individualmente, reconhecendo que deve prevalecer o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e, especialmente, a coisa julgada.
Foi reconhecida a aproximação entre os campos do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador aplicando a possibilidade da retroatividade da exigência do dolo para a configuração do ato de improbidade para fatos pretéritos que sejam objeto de ação ainda não transitada em julgado.
Contudo, em relação às ações já transitadas em julgado, prestigiou-se o instituto da coisa julgada para vedar a revisão de sanções já impostas, não sendo reconhecida a possibilidade de aplicação da retroatividade das normas, bem como para as novas regras de prescrição.
Assim, é inequívoco que a jurisprudência reconhece em diversas situações a possibilidade de aplicação de alguns princípios constitucionais do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador.
Referências bibliográficas
FREITAS, Izaías Dantas. A finalidade da pena no Direito Administrativo Disciplinar. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, nº 141, jan/mar.1999. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/455/r141-10.pdf
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo sancionador, 5. ed., São Paulo: RT, 2015, e-book.
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Retroatividade da reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021). Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, novembro 2021 (Texto para Discussão nº 305). Disponível em: Textos para Discussão nº 305, de 2021: Retroatividade da Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (senado.leg.br).
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; HALPERN, Erick. A retroatividade da lei mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador e a reforma da Lei de Improbidade pela Lei 14.230/2021. GenJurídico, 8 nov. 2021. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/administrativo/reforma-da-lei-de-improbidade/?gad_source=1&gclid=EAIaIQobChMI56.