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A mitigação do art. 651 da CLT pela Justiça do Trabalho
Embora a Consolidação das Leis do Trabalho defina expressamente como será fixada a competência territorial da Justiça do Trabalho, o TST mitigou a aplicação da CLT em situações específicas
Regras x Princípios
Há uma distinção lógica entre princípios jurídicos e regras jurídicas. Ambos os institutos partem de pontos comuns para decisões sobre obrigações jurídicas em situações específicas. Entretanto, sua distinção ocorre no resultado da medida implementada.
As regras são normas que pretendem produzir efeitos já definidos e delimitados em seu comando e aplicáveis a um conjunto de situações que pode ser previamente identificado, apenas tendo em conta o dispositivo normativo. A aplicação das regras aos casos práticos obedece a um critério de eliminação. Para o enquadramento fático, ou a regra é válida e aceita, ou é refutada e inválida, um critério de tudo ou nada.
Os princípios expressam uma dimensão do sistema jurídico. Sem ostentarem conteúdo predefinido, são essencialmente vagos e imprecisos. Mas nem por isso se pode dizer que são fórmulas vazias e sem sentido, ou de abstrações inalcançáveis, porquanto se encontram radicados nos horizontes de experiência histórico-cultural, no tempo e no espação. Ligam-se sempre a uma dada realidade.
Os princípios podem ser designados como mandamentos de otimização. Como tais, são normas que ordenam que algo seja realizado em máxima medida relativamente às possibilidades reais e jurídicas. Isso significa que elas podem ser concretizadas em diversos graus e que a valoração exigida de sua efetivação depende não apenas das possibilidades reais, mas também das jurídicas.
As regras possuem um âmbito de atuação mais restrito e os princípios um âmbito de atuação mais abrangente, na maior parte das situações, o que não significa que estes tenham uma relevância maior que aqueles. Ao contrário, as regras são de fundamental importância na medida em que pacificam um tema, normatizando-o de maneira com que as ações e condutas estejam previstas e descritas em lei, reduzindo seu carácter discricionário.
As regras são normas que, em caso de realização do ato, prescrevem uma consequência jurídica definitiva, ou seja, em caso de satisfação de determinados pressupostos, ordenam, proíbem ou permitem algo de forma definitiva. Por isso são chamados de mandamentos definitivos, considerando que seus limites e sua abrangência já se encontram contidos dentro do próprio texto normativo, sendo incabível a discussão acerca da sua aplicabilidade ou não ao caso prático.
Noutro giro, a utilização dos princípios nas situações concretas compreende um critério de convivência. Em uma mesma situação, diversos princípios distintos podem ser utilizados ou, até mesmo, estar em conflito, sem que nenhum deles deixe de ter a sua utilidade ou tenha sua existência comprometida dentro do ordenamento jurídico.
Diante desse cenário, a convivência entre os princípios é conflituosa e entre as regras é antinômica, em que os princípios coexistem e as regras antinômicas se excluem. Quanto à escolha e aplicação do princípio, permite-se o balanceamento de valores e interesses, enquanto nas regras adota-se a lógica do tudo ou nada.
A conclusão a que se chega é que as regras conflitam com regras e princípios conflitam com princípios, porque o conflito de regras com princípios sempre conduziria a uma flexão da regra não prevista em seu conteúdo, cuja interpretação provavelmente se afastaria da sua pretensão, gerando um tensionamento indesejado da norma e à insegurança jurídica.
No tocante à definição da competência territorial para processar e julgar as ações de natureza trabalhista, o texto consolidado prevê expressamente quais as hipóteses de incidência do seu artigo 651.
A definição da competência territorial da Justiça do Trabalho prevista no art. 651 da CLT
O art. 651 da Consolidação das Leis do Trabalho define que a competência das Varas do Trabalho será determinada pelo local da prestação dos serviços pelo trabalhador, ainda que tenha sido contratado em outro local ou país.
Os parágrafos do referido dispositivo legal trazem, ainda, as hipóteses de exceção à regra, indicando que (i) para o agente/viajante comercial, a competência será da Vara do Trabalho da localidade em que a empresa tenha agência ou filial a que o empregado esteja subordinado e, caso não haja, será no domicílio do obreiro ou local mais próximo; (ii) em se tratando de empregado que realize as suas atividades laborais fora do local em que foi entabulado o contrato de trabalho, lhe será assegurada a faculdade de apresentar a reclamação trabalhista no foro da celebração do contratou ou no local da prestação dos serviços.
Essas disposições se aplicam aos empregados brasileiros vinculados a agências ou filiais no estrangeiro e desde que não haja convenção internacional dispondo em sentido contrário.
Vê-se, assim, que o art. 651 da CLT trata de norma regra, cujas cláusulas de exceção estão previstas nos seus parágrafos e, por coerência com o ordenamento jurídico e em respeito ao legislador, não haveria que se falar em mitigação ou flexibilização do dispositivo legal sem prejuízo da própria higidez do sistema de normas.
A mitigação da regra do art. 651 da CLT pelo TST
Em que pese o conflito de normas jurídicas deva se operar entre regras x regras e princípios x princípios, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, com o intuito de pacificar o entendimento dissonante entre as Turmas da Corte Superior Trabalho e dar maior concretude ao princípio do livre acesso ao Judiciário, nos termos do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição, definiu que pode ser conferida interpretação ampliativa ao § 3º, do art. 651, da CLT, quando o trabalhador tiver sido contratado ou recrutado em cidade distinta da prestação dos serviços por empresa de porte nacional, como se verifica no julgamento do E-RR-420-37.2012.5.04.0102, sob a relatoria do Ministro Renato de Lacerda Paiva, julgado em 19/02/2015.
Esse movimento da Justiça do Trabalho se desenhava desde antes da pacificação da matéria pelo TST, em que foi aprovado o Enunciado nº 7 na 1ª Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho, promovida pelo Tribunal Superior do Trabalho e pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, em novembro de 2007:
“7. ACESSO À JUSTIÇA. CLT, ART. 651, § 3º. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. ART. 5º, INC. XXXV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Em se tratando de empregador que arregimente empregado domiciliado em outro município ou outro Estado da federação, poderá o trabalhador optar por ingressar com a reclamatória na Vara do Trabalho de seu domicílio, na do local da contratação ou no local da prestação dos serviços.”
É certo que a promoção do acesso à função jurisdicional do Estado, com a facilitação do trabalhador que efetivamente se encontre em hipossuficiência, é um princípio constitucional que deve ser implementado na maior medida possível.
O que não pode haver, todavia, é o afastamento de disposições expressas contidas na legislação trabalhista, sob pena de tornar morta à sua literalidade.
Nesse aspecto, quando o trabalhador não se enquadrar as hipóteses previstas nos parágrafos do art. 651, da CLT, o foro competente para processar e julgar a ação trabalhista é o local da prestação dos serviços:
Art. 651 – A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro.
O Ministro Sérgio Pinto Martins (6) destaca que “a competência das Varas do Trabalho é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador”, concluindo que:
“O caput do art. 651 da CLT dispõe sobre a regra geral para estabelecer a competência em razão do lugar onde a ação trabalhista será proposta.
Assim, a ação trabalhista deve ser proposta no último local da prestação de serviços do empregado, ainda que o empregado tenha sido contratado em outra localidade ou no estrangeiro.
(…)
É irrelevante o local em que o empregado reside ou onde foi contratado para efeito de ser fixada a competência; relevante é o local da prestação dos serviços.”
A regra prevista no art. 651, caput, da CLT visa à facilitação da instrução processual, pois as provas, especialmente a testemunhal, são, em regra, encontradas no local da prestação do serviço. (7) Isso porque a norma foi concebida para facilitar o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho, mormente pelo fato de que em meados do século XX era bastante precário o sistema de transportes para deslocamento territorial de trabalhadores no âmbito intermunicipal e interestadual.
A finalidade da norma ao fixar a competência pelo local da prestação de serviços para a tramitação da reclamação trabalhista consiste em facilitar o acesso do trabalhador à Justiça, pois no local da prestação de serviços, presumivelmente, o empregado tem maiores possibilidades de produzir provas, trazendo suas testemunhas para depor. Além disso, neste local, como aponta Mauro Schiavi (8), o empregado pode comparecer à Justiça sem maiores gastos com locomoção.
De acordo com a interpretação literal do art. 651, da CLT, a ação trabalhista deve ser ajuizada no local em que o empregado prestou serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado em outra localidade ou em outro país.
É inegável que essa interpretação literal do art. 651, caput, da CLT pode não ser a mais justa, e, no entender de Carlos Henrique Bezerra Leite, cabe ao intérprete buscar o real sentido e finalidade precípua na citada regra, levando sempre em conta os seus fins sociais e a promoção da justiça. (7)
Nesse contexto, o referido autor defende que o juiz poderá valer-se das interpretações sistemática e teleológica que o orientarão no sentido de fixar a sua competência territorial considerando a questão da (in)suficiência econômica do trabalhador e a facilitação do seu acesso à Justiça Laboral. (7)
Não restam dúvidas que o posicionamento doutrinário visa a garantir ao trabalhador o acesso ao Judiciário e que, imbuído desse sentimento, os Tribunais Regionais do Trabalho e, posteriormente, as Turmas do Tribunal Superior do Trabalho passaram a adotar critérios não previstos em lei.
O parágrafo terceiro prevê expressamente que, na hipótese de o trabalhador ter sido contratado em local diverso da prestação dos serviços poderá optar entre o foro da celebração do contrato e o foro do local de serviços.
O que fez a Justiça do Trabalho? Acrescentou novas hipóteses à regra: quando o trabalhador tiver sido contratado ou recrutado (situação não prevista na CLT) em local diverso da prestação dos serviços e o empregador for empresa com atuação em todo o território nacional (hipótese também prevista no texto consolidado), poderá mover a sua demanda no local da prestação/contratação dos serviços ou no seu domicílio (circunstância igualmente não tratada pela norma regra do art. 651, § 3º, da CLT).
Injusta ou não, a norma jurídica não previa a arregimentação, a atuação nacional pelo empregador e a possibilidade de ajuizamento da ação no domicílio do empregado – que pode ser distinto do local do recrutamento e da prestação dos serviços, para a mitigação do art. 651, da CLT.
Assim, o princípio do “livre acesso ao judiciário” flexionou um mandamento de definição, impondo-lhe uma leitura totalmente diferente daquilo que se extrai da norma em si.
A partir daí, por ser o Brasil um país de dimensões continentais, um julgador pode entender como suficiente uma atuação interestadual ou regional para mitigar a regra da definição da competência territorial, por exemplo.
Se do ponto de vista formal o ativismo que ensejou a interferência do TST para trazer novas balizas à Consolidação das Leis do Trabalho parece não ter enfrentado grande resistência, sob a ótica material, no atual cenário de realização de atos processuais na modalidade virtual, é de pouca relevância a definição de onde houve a contratação/arregimentação ou se a empresa é de porte nacional.
Isso porque no momento do ajuizamento da ação o trabalhador pode optar pela sua tramitação na modalidade 100% eletrônica, ou, ainda, requerer a produção de atos processuais na modalidade virtual em razão do dispêndio com o seu deslocamento para o foro competente. Portanto, hoje existem alternativas sistêmicas que permitem cumprir as regras processuais sem emprestar-lhes interpretação incompatível com o seu texto.
Conclusão
Não é nova no Brasil a tendência de os Tribunais, sobretudo os Superiores, emprestarem às regras jurídicas interpretações totalmente distantes daquilo que consta do seu texto, especialmente ao argumento de que as regras devem ser lidas e interpretadas à luz dos princípios constitucionais contemporâneos.
Esse entendimento não é de todo heterodoxo porque a regra principiológica é que o ordenamento jurídico é constituído por normas que estejam em consonância com a Constituição.
A grande questão é flexibilizar a interpretação das regras para que, em um dado momento histórico e contexto evolutivo, o conteúdo delas outrora extraído possa estar em descompasso com a própria mens legis originalmente concebida.
Como exposto, se existem regras antinômicas, apenas uma delas pode permanecer no ordenamento jurídico. Contudo, se não existe antinomia, mas um sentimento de injustiça, não é mudando a sua interpretação com pressuposto em princípios constitucionais que se promoverá a segurança jurídica, tal como promovido pelo TST no que diz respeito a aplicação do art. 651, da CLT, e seus parágrafos.
A existência de regras, que servem como instrumento de regulação social, pressupõe o seu cumprimento e aplicação, não a sua mitigação à luz de uma melhor interpretação constitucional.
Com os constantes desafios do ativismo judicial e a inércia legislativa, os meios tecnológicos se prestaram ao fiel cumprimento do art. 651 da CLT, tendo em vista a possibilidade da prática de atos processuais, ou ainda da inteira tramitação do processo, na modalidade virtual, mantendo a higidez da referida norma e o respeito dos seus exatos termos, ao mesmo tempo em que o acesso ao Judiciário é promovido.
Autores: Leonardo Vasconcelos Lins Fonseca e Norberto Gonzalez Araújo
¹ Neves, Daniel Amorim Assumpção, Novo Código de Processo Civil, 3.ed.rev, atual. e ampl., – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, pág. 414