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O uso da tecnologia durante a pandemia e a retomada da rotina forense ao âmbito presencial após o fim da emergência de covid-19
O Código de Processo Civil vigente, promulgado no ano de 2015, promoveu um considerável avanço no que concerne à implementação da tecnologia na rotina forense ao autorizar, por exemplo, a prática de atos processuais eletrônicos. Isso inclui, por exemplo, sustentações orais e depoimentos por meio de videoconferência, salienta-se, contudo, que o CPC anterior já permitia a produção, a transmissão, o armazenamento e a assinatura por meio eletrônico, mas não na sua redação original, e sim a partir das alterações trazidas pela Lei nº 11.419, de 2006.
Apesar disso, os avanços tecnológicos e as facilidades admitidas pelo diploma processual não eram utilizados, em larga escala, pela máquina judiciária, especialmente em locais com carência de recursos financeiros ou mais afastados das capitais.
Ocorre que, a partir de meados de março de 2020, com o agravamento da pandemia da SARS COVID-19 no Brasil, a única alternativa possível para garantir o acesso à justiça e evitar uma sobrecarga ainda maior do Poder Judiciário seria recorrer às soluções tecnológicas que a contemporaneidade permite.
Antes que houvesse a migração completa do ambiente presencial para o telepresencial, como veio a ocorrer, muitas incertezas pairaram sobre os operadores de direito. Relacionado ao trabalho profissional, existiam as indagações em relação aos aspectos jurídicos: o acesso à justiça e os demais princípios constitucionais seriam mitigados? O acesso aos locais físicos, como fóruns, tribunais, delegacias, defensorias etc seria restringido? Os prazos processuais ficariam suspensos durante o período de isolamento?
Esses e outros questionamentos ainda não tinham uma resposta definitiva, e o Conselho Nacional de Justiça se antecipou e aprovou, em 19 de março de 2020, a Resolução nº 313, que suspendia os prazos processuais até o dia 30 de abril de 2020. Depois dela, diversas outras resoluções e provimentos no mesmo sentido foram publicados não só pelo CNJ, como também pelos Tribunais. E essas medidas tornaram possíveis a adaptação dos profissionais do direito à nova realidade fática constituída no contexto social brasileiro.
A migração do trabalho no ambiente presencial para o ambiente telepresencial (“Home Office”)
Assim se deu a migração da rotina forense para o ambiente telepresencial, popularmente conhecido como “home office”. Dessa forma, o STF, o órgão que primeiro implementou a medida, seguido pelo STJ e, posteriormente, pelos tribunais estaduais, com especial destaque para o TJ/SP, tomaram as providências necessárias para introduzir o julgamento à distância. Na época, em levantamento divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, foi apontado que, no período compreendido entre 1º de maio e 4 de agosto de 2020, o Poder Judiciário brasileiro realizou 366.278 mil videoconferências por meio da Plataforma Emergencial de Videoconferência para Atos Processuais, a maioria voltada para realização de audiências e sessões de julgamentos. (MELO, 2020).
Para regular a realização do trabalho no ambiente telepresencial, a Medida Provisória aprovada na época (MP nº 927, de 22 de março de 2020), esclareceu “sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública […] e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências”. A previsão do art. 4º, parágrafo 1º, era que “considera-se teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância a prestação de serviços preponderante ou totalmente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias da informação e comunicação que, por sua natureza, não configurem trabalho externo”.
É razoável afirmar que essa mudança abrupta do ambiente de trabalho em razão da pandemia dificilmente ocorreria com a mesma eficiência em outro contexto, uma vez que, ao longo da história, os operadores de direito se mostraram resistentes à implementação de tecnologia no cotidiano. No ano de 1929, por exemplo, a Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Minas Gerais anulou uma sentença judicial porque ela não havia sido escrita de próprio punho pelo magistrado, e sim datilografada. Outrossim, anos depois, várias sentenças foram anuladas porque os juízes haviam usado microcomputadores e a tecnologia supostamente poderia permitir a reprodução de sentenças repetidas e reiteradas vezes sem a devida atenção dos magistrados ao caso concreto. (COELHO, 2007).
Desse modo, levando-se em consideração o histórico relatado, o sucesso nessa nova rotina de teletrabalho implantada às pressas (devido ao alto índice de contágio da população pela SARS COVID-19) foi inesperado: o presidente do TJ/PR à época, por exemplo, informou que houve um aumento de 40% de produtividade na pandemia, enquanto o trabalho remoto também se mostrou satisfatório perante os advogados. Mas, por outro lado, os pontos negativos da situação pandêmica ultrapassaram os limites da saúde pública e impactaram de maneira significativa as atividades jurisdicionais, especialmente em um país com profundas desigualdades sociais como o Brasil. (MELO, 2020).
Importante ressaltar que, ainda que a advocacia tenha conseguido se adaptar com razoável facilidade ao ambiente telepresencial (apesar de haver mais riscos, por exemplo, em relação à proteção de dados), o atendimento de pessoas físicas hipossuficientes ficou consideravelmente prejudicado, uma vez que as Defensorias Públicas passaram a ter o atendimento presencial restrito. (ASPERTI; TARTUCE. 2020).
Diante desse cenário, o STJ preocupou-se em formalizar orientações jurisprudenciais (nº 178) sobre os temas que surgiram em razão da pandemia, em que os entendimentos foram extraídos de julgados publicados até 24/09/2021. Replica-se, aqui, algumas das teses:
- Não é cabível mandado de segurança para impugnar ato normativo que fixa medidas restritivas para prevenir a disseminação da SARS COVID-19, por não constituir via própria para questionar lei em tese.
- A suspensão dos prazos processuais, determinada pelas resoluções editadas pelo Conselho Nacional de Justiça em virtude da pandemia da SARS COVID-19, prescinde de comprovação.
- A suspensão dos prazos processuais, no tribunal de origem, fora dos períodos mencionados nas resoluções editadas pelo CNJ em razão da pandemia da SARS COVID-19, deve ser comprovada no momento da interposição do recurso.
- O risco de contaminação pelo coronavírus (covid-19) em casa de acolhimento (abrigo) pode justificar a manutenção da criança com a família substituta.
E é em um momento delicado como esse, em que o mundo atravessou uma crise não só na saúde pública, como econômica e humanitária, que o ativismo judicial possui indiscutível relevância, uma vez que o Poder Judiciário, a partir da interpretação de princípios constitucionais, encontra respaldo para atuar especialmente na defesa e na efetivação dos direitos sociais.
O retorno do trabalho ao ambiente presencial após o fim da emergência de Covid-19
Após esse período extremamente desafiador, e a partir do avanço da vacinação, a retomada ao trabalho presencial ocorreu de forma paulatina. Em 5 de maio de 2023, a Organização Mundial da Saúde declarou o fim da emergência internacional causada pela SARS COVID-19 (VARELLA, 2023). Ainda que a doença continue sendo um notório problema de saúde pública em nível mundial, a pandemia iniciou uma tendência de declínio, como demonstra a análise dos relatórios divulgados semanalmente pela OMS, sendo que os registros de casos e mortes no mundo já se mantinham relativamente estáveis desde abril de 2022 (BIERNATH, 2023).
É o que demonstram os gráficos abaixo, com informações sobre as internações semanais em hospitais e UTIs:
Fonte: OMS (2023)
Em momento anterior ao fim da emergência de SARS COVID-19 declarado pela OMS, contudo, o Conselho Nacional de Justiça já havia determinado o retorno presencial dos trabalhos da Justiça por meio da Resolução nº 481/22, que passou a vigorar em 27 de janeiro de 2023, determinando, por exemplo, que o teletrabalho ficasse limitado apenas a 30% do quadro de servidores.
A nova realidade que tem se constituído no ambiente forense é de um trabalho híbrido, que já era admitido desde a vigência do CPC de 2015, legislação que menciona expressamente o uso de alguns tipos de tecnologia, mas que ainda não eram utilizadas em larga escala, como passou a acontecer desde o início o período pandêmico. Nesse sentido, a própria Resolução nº 481/22 do CNJ reconheceu que o uso da tecnologia trouxe significativas melhorias à rotina judiciária durante a pandemia de SARS COVID-19, como o ganho da qualidade de vida dos servidores e magistrados e a redução de gastos registrada por diversos tribunais.
Antes da publicação da Resolução nº 481/22 do CNJ, o Tribunal de Justiça de São Paulo já havia publicado a Resolução nº 850/2021 a qual posteriormente, foi alterada pela Resolução nº 864/2022, em que há regulamentação do teletrabalho. O conteúdo da Resolução destaca “a experiência exitosa do revezamento diário de serventuários(as)” e uma das providências elencadas é a flexibilização do período de revezamento entre os servidores, com o devido respeito às porcentagens máximas em home office (50% nas unidades de 1º grau). Ali, também ficou estabelecida a possibilidade de inclusão de estagiários, funcionários cedidos pelas municipalidades e, ainda, de voluntários na modalidade à distância.
Os demais tribunais também foram retornando, gradualmente, ao ambiente presencial a partir da publicação de portarias, resoluções e decretos, sendo que o CNJ realiza o devido acompanhamento e a fiscalização da retomada das atividades presenciais. É possível acompanhar por meio de um painel online, inclusive, as informações acerca de cada um dos tribunais.
Em consulta realizada em 14 de junho de 2023, a informação que aparecia no painel era de que 97,3% dos magistrados haviam retornado, enquanto o percentual dos servidores correspondia a 82,53%:
Fonte: CNJ (2023)
O retorno do Superior Tribunal de Justiça ao âmbito presencial, por sua vez, também foi realizado de maneira cautelosa. Em julho de 2020, o então presidente do STJ, o Ministro João Otávio de Noronha, chegou a afirmar que a sessão por videoconferência tinha a mesma feição da sessão física, já que havia a possibilidade de apresentação de sustentação oral e interação com os participantes do julgamento (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2020). Assim, não visualizava prejuízo para as partes, especialmente no contexto em que as taxas de contaminação por SARS COVID-19 ainda eram muito expressivas.
Posteriormente, foi publicada a Resolução STJ/GP nº 33/2021, cujo texto foi atualizado pela Resolução STJ/GP nº 7/2022, cujo estabelecimento de retorno ao trabalho presencial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e dá outras providências. Dessa maneira, o Pleno estabeleceu o retorno ao trabalho presencial do STJ a partir de 1º/04/2022.
De maneira igualmente cautelosa ocorreu o retorno do Supremo Tribunal Federal ao âmbito presencial. Em outubro de 2021, foi publicada a Resolução nº 748, que estabeleceu diversas medidas e orientações para o retorno às atividades presenciais. Dentre as informações ali trazidas, foi mencionado que, à época, havia elevada cobertura vacinal da força de trabalho do STF, de 95% entre servidores e colaboradores respondentes do inquérito vacinal promovido pela Secretaria de Serviços Integrados de Saúde e que a força de trabalho do STF é em sua maioria jovem, com 59% dos servidores e colaboradores com idade entre 21 e 45 anos.
Alguns meses depois, em fevereiro de 2022, houve a atualização das medidas e das orientações para o funcionamento das atividades presenciais no Supremo Tribunal Federal. Ficou estabelecido que, tanto as sessões de julgamento do Plenário quanto as sessões de julgamento das Turmas, passariam a ser realizadas em formato presencial, a partir de 7 de março de 2022, ressalvados os critérios da respectiva Presidência e os motivos pessoais de cada Ministro.
Ocorre que, após sucesso na migração da rotina forense para o ambiente telepresencial ou remoto, era de se esperar que haveria alguma resistência dos magistrados e dos servidores públicos em relação ao retorno do trabalho presencial, conforme determinado pelo Conselho Nacional de Justiça. Nesse sentido, é pertinente mencionar que em março de 2023, a imprensa brasileira teve acesso a uma carta pública com adesão autodeclarada de “aproximadamente 800 magistrados e magistradas estaduais, federais e trabalhistas” de todo o país que são contrários à volta integral ao ambiente presencial (MARINATO, 2023).
De acordo com as informações divulgadas, se não houver solução para o impasse entre o CNJ e o grupo de magistrados e entidades de classe contrários à medida, é possível que o imbróglio seja levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), pois o grupo entende que a determinação do CNJ viola o princípio da independência funcional da magistratura nacional. A carta pública afirma, ainda, que o CNJ, ao “retirar a autonomia de gestão” e “determinar a forma de audiência em normas administrativas”, prejudicou a liberdade de cada órgão para deliberar “a respeito da melhor forma de prestação da jurisdição segundo o interesse público”.
Além disso, a carta crítica outras determinações, como a “agenda de comparecimento dos magistrados à unidade jurisdicional”, mencionando, inclusive, a hipótese de denunciar o CNJ “por sua decisão administrativa ser contraproducente ao serviço judiciário e custosa ao Erário” com a implementação de “direitos e obrigações não previstos em leis, como apresentação de escala, frequência ou obrigatoriedade de modalidade de audiências”. A esse respeito, destaca-se que, em janeiro de 2023, a Associação dos Magistrados Brasileiros já havia chegado a defender “um modelo híbrido, que leve em consideração as particularidades de cada região”.
Conclusão
O trabalho híbrido realmente se tornou uma tendência contemporânea em diversas áreas, não apenas na área jurídica, uma vez que no ano de 2022 foi realizado um levantamento indicando que 56% das empresas no Brasil adotam esse modelo, sendo que no ano anterior o percentual correspondente era de 44%. Em 2022, ainda, apenas 25% das empresas permaneceram no modelo presencial, enquanto no ano de 2021, a porcentagem era de 29%, de acordo com o levantamento (ZANATTA, 2022).
Esse mesmo estudo, que foi realizado pelo Google Workspace, em parceria com a consultoria IDC Brasil, indicou que, em 2021, 27% dos profissionais trabalhavam integralmente de maneira remota, enquanto em 2022 o dado caiu consideravelmente para 19%. É realmente perceptível, portanto, que o modelo híbrido de trabalho tem sido cada vez mais utilizado, enquanto os ambientes integralmente remotos ou presenciais têm diminuído.
Essa tendência se justifica, pois, se por um lado o trabalho integralmente presencial pode trazer alguns malefícios como maior tempo de deslocamento, o trabalho integralmente remoto também pode causar problemas como desconexão social em relação aos colegas de trabalho, dificuldade de trabalhar em casa e precariedade no trabalho. O assunto tem sido abordado em trabalhos acadêmicos na área jurídica, sendo pertinente mencionar que:
O trabalho em home office, dizem os experts, pode levar a longas horas de trabalho, à estagnação profissional, a prestações por empreitada, ao isolamento, além de, aquele que não tem escritório ou espaço apropriado em casa sofre sobreposições contínuas entre trabalho e o ambiente doméstico.
Essa possibilidade de sobreposição pode levar à inversão na ocupação do tempo, deixando o trabalho para período inadequado (p. ex., noite) ou ainda dar ensejo a exposição prolongada ao computador (o mais utilizado). Ainda pode prejudicar a interação social com amigos, colegas de trabalho etc., bem como de causar doenças oculares e depressão por isolamento.
Portanto, o teletrabalho oferece vantagens, que estamos vendo notadamente em tempos excepcionais de pandemia, mas também complexidades e problemas que devem ser enfrentados e resolvidos.
O teletrabalhador em tempo integral se desconecta de seu ambiente social, pois deixa de ir e voltar do trabalho, de conversar e interagir com colegas, de participar de eventos no local de trabalho (p. ex. aniversários, comemorações), episódios que constroem a subjetividade, as emoções, os vínculos com a comunidade da cercania.
O teletrabalho elimina a possibilidade de comunicação face a face com o outro. Ele isola, afasta o indivíduo do seu meio, reduz seus laços racionais, enfim, compromete a sociabilidade. (BORBA; NEPOMUCENO, 2021).
É evidente que cada indivíduo possui preferências, hábitos, condições e referenciais distintos. Consequentemente, cada um também se adaptará de maneira singular à nova rotina estabelecida a partir do fim da emergência de SARS COVID-19. No ambiente forense, o desafio, indubitavelmente, tem sido conciliar todos os interesses envolvidos sem permitir que haja a inobservância aos direitos das partes envolvidas, tanto em aspectos processuais quanto na prática do seu ofício.
Portanto, com o fim da emergência de SARS COVID-19, evidencia-se a busca por um equilíbrio para que a nova rotina forense passe a funcionar adequadamente para todos os envolvidos. Se, por um lado, os avanços tecnológicos e o trabalho remoto podem ser muito benéficos para diversos servidores, magistrados e advogados, a migração completa para o ambiente virtual também pode vir a trazer malefícios, como isolamento e precariedade das condições de trabalho.
Essa é mais uma das situações em que se torna indispensável a sensibilidade dos operadores de direito para verificar as peculiaridades que se apresentam no caso concreto e, assim, fazer prevalecer o acesso à justiça da maneira mais plena possível, especialmente em relação à população mais vulnerável que, muitas vezes, não possui condições de fazer uso da tecnologia prevista no CPC vigente, ainda que ela se faça útil em diversas ocasiões.
Autora: Natália Ignan Machado