Atualização do código civil pela comissão de juristas A questão da “atualização” à luz da jurisprudência

11 de março de 2025

Em 28 de agosto de 2023, o Boletim Administrativo do Senado Federal publicou o Ato do Presidente do Senado nº 11, de 24 de agosto de 2023, que instituiu “Comissão de Juristas” para a revisão e atualização do Código Civil e nomeou para Presidente e Vice-Presidente da Comissão os Ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, ambos do STJ.

A importância do momento de rediscussão de um Código Civil

O citado ato do presidente do Senado é repleto de significados, uma vez que propostas de novo Código Civil ou de revisão ampla e sistemática do Código vigente não são capítulos triviais da história jurídica de um país, mas sim períodos de grande importância e que apresentam repercussões jurídicas, políticas e institucionais.

De fato, trata-se de oportunidade, nem sempre oportuna ou conveniente, de rediscutir conceitos e institutos jurídicos que estão na gênese das relações intersubjetivas e que formam o chamado regime jurídico de direito civil. Dessa forma, sempre é momento sensível a rediscussão, mesmo que a título de atualização, de noções fundantes como de direitos da personalidade, propriedade, negócio jurídico, bens, personalidade jurídica, responsabilidade civil, família e regras de sucessão.

Não é por outro motivo que a análise oficial do Código Civil é evento marcado por debates também de cunho jus-filosófico, tendo em vista que paradigmas jurídicos já sedimentados na tradição e nas práticas civis podem ser redesenhados sem os necessários cuidados com a sua repercussão social, econômica e política.

O Código Civil Napoleônico de 1804, por exemplo, serviu principalmente como instrumento de sublimação do antigo regime monárquico na França. Os debates em torno do Código Civil Alemão, que entrou em vigor em 1900, foi importante instrumento para a própria unificação da Alemanha com a superação das várias legislações dos principados, ducados e reinos que existiam. Também no Brasil esse contexto multifacetado esteve presente: a Lei nº 3.071, de 1916, fruto da proposta de Clóvis Bevilaqua, reforçou nossa autonomia como nação ao romper com a tradição das ordenações, alvarás e da aplicação da legislação portuguesa no Brasil. Finalmente, o Código Civil vigente, fruto também de comissão de juristas que, sob a presidência do jurista Miguel Reale, trabalhou entre 1969 e 1975, marcou salto de contemporaneidade e renovação das regras civis nacionais após o longo século XX e um período de 27 anos de tramitação da proposta no Congresso Nacional.

O objetivo de atualização da Lei nº 10.406/2002

Como destacado, o ato do presidente do Senado justificou o trabalho sistemático de alteração da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na noção de necessidade de sua atualização. De fato, a premissa da “atualização” é também reafirmada como justificadora e legitimadora dos trabalhos da Comissão a partir da análise de seu regimento interno de funcionamento, do seu plano de trabalho, dos vários relatórios parciais das subcomissões e de seu relatório final.

Sendo assim, torna-se fundamental perquirir acerca do sentido próprio atribuído ao termo “atualização” pela Comissão de Juristas. Esse significado serve como referência para o exame das sugestões de texto contidas no anteprojeto apresentado ao Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, em 18 de abril de 2024, em cerimônia oficial de entrega dos resultados dos trabalhos.

A expressão “atualização” recebeu da Comissão sentido próprio, embora de múltiplas nuances, cada qual passível de análise e investigação e com potencial de revelar conclusões e preocupações específicas.

De maneira geral, é possível identificar seis dessas dimensões semânticas para o termo “atualização”:  (I) elaboração de propostas à luz dos precedentes do STF e, principalmente, do STJ; (II) sugestão de novos textos conforme os enunciados das jornadas do Conselho da Justiça Federal; (III) recomendação de redações ao Código Civil que corrijam artigos confusos ou de difícil compreensão; (IV) sugestão de novos dispositivos para remediar artigos com interpretações dúbias; (V) propositura de novos textos de forma a incluir no Código Civil novas possibilidades jurídicas; e (VI) recomendação de novos dispositivos para assimilar ao texto do Código Civil novas tecnologias.

Alguns desses sentidos foram expressamente reconhecidos pelo próprio relatório final assinado pelos professores Flávio Tartuce e Rosa Maria Nery (e pelos relatórios parciais). Outros significados de “atualização” foram tratados nos relatórios parciais sob a forma de preocupações pontuais dos integrantes da Comissão, embora evidenciem verdadeiros pressupostos estruturantes das sugestões.

Dessa forma, perquirir acerca da correção e conveniência desses sentidos de “atualização”, mesmo que ainda submetidos – tal como defendido no relatório final – aos princípios de eticidade, de socialidade e de operabilidade, pode revelar repercussões práticas das recomendações de texto do anteprojeto que certamente terão que ser ponderadas ao longo do processo legislativo.

“Atualização” como incorporação da Jurisprudência do STJ e STF

Dentre as seis percepções de “atualização” que a Comissão utilizou, destaca-se a ideia de revisão do Código Civil para nele incorporar a jurisprudência do STJ e do STF. Embora possa parecer noção intuitiva, um olhar mais acurado pode constatar consequências mais profundas.

Em princípio, o Poder Judiciário, ao interpretar diuturnamente as leis do país, produz entendimentos hermenêuticos que renovam o próprio sentido dos dispositivos. Parece, portanto, evidente que o trabalho de atualização do Código Civil não pode prescindir do auxílio dos precedentes dos Tribunais Superiores.

A questão, entretanto, parece ser mais complexa. O ponto de partida é a verificação das diferenças essenciais entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, seja na forma como se dá o convencimento de seus membros, seja no modelo decisório interno, seja ainda no objeto de trabalho.

A decisão nos órgãos colegiados do Poder Judiciário se dá a partir da coleta de votos representativos de consciências individuais e capacidades jurídicas e técnicas pessoais dos Ministros. Também sua forma de convencimento é própria: a teor do art. 93, inciso IX, da Constituição, as decisões precisam ser fundamentadas a partir de lógicas jurídicas estabelecidas e orientadas pela lei e jurisprudência.

No Poder Legislativo, por sua vez, a lógica decisória é distinta, marcada pelo procedimento democrático, no qual, dentro das regras estabelecidas nos regimentos internos das Casas Legislativas e com o respeito ao direito de oposição, a maioria suplanta a minoria. Nessa engrenagem, a justificação, embora importante, não é decisiva, de forma que parlamentares votam de acordo com os estratos sociais e políticos que representam e a partir dos quais se veem legitimados. Elaborar uma nova lei geral e abstrata ou revisar um ato normativo vigente se ancora fundamentalmente nesse esquema democrático, no qual vários interesses e posições políticas e sociais são sopesadas para produzir um texto final que represente a convergência complexa e possível de várias visões de mundo a partir de um grande diálogo legislativo.

Talvez por isso o Presidente da Comissão, Ministro Salomão, no evento que marcou a entrega do anteprojeto, afirmou que “as inovações propostas são um ponto e partida para o trabalho dos parlamentares”, que, agora, deverão se dedicar ao processo legislativo regular.

Legislar com base nos casos excepcionais ou abstratos?

Outra questão que se coloca é que os casos julgados pelo Poder Judiciário são, necessariamente, concretos e, portanto, únicos, com seus elementos próprios, com suas específicas circunstâncias. Discute-se, portanto, se seriam, nesse contexto, fontes adequadas para motivar uma proposta de reforma legislativa.

Sem descuidar do fato de que é cada vez mais comum a análise, pelos Tribunais, de teses jurídicas em abstrato, como se dá nos casos de resolução de demandas repetitivas ou em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, é preciso também reconhecer que não são raros os precedentes dos Tribunais que se apresentam como verdadeiras exceções às regras legislativas, julgamentos esses nos quais os Ministros dedicam todo o seu conhecimento e criatividade para justificarem que a lei, naquele caso específico, precisaria ser  relativizada dessa ou daquela outra forma; ou até que o caso não estaria albergado no âmbito de proteção da lei. Esses são, inclusive, os acórdãos geralmente mais alentados, os que demandam mais reflexão dos magistrados.

Esses casos não representariam, portanto, a situação comum e ordinária que, até então, serviu de fonte para a formação da legislação.

Diante desse contexto bem conhecido, é natural imaginar que uma “atualização” do Código Civil à luz da jurisprudência acabe por dar maior ênfase aos casos excepcionais, em vez daqueles que sempre serviram de substrato para o exercício legislativo. Resta ver qual será o resultado dessa peculiar proposta de Reforma.

Conclusão

Embora a Comissão de Juristas tenha justificado o seu trabalho em mera tarefa de “atualização” do Código Civil, não há como negar que o anteprojeto propõe alterações substanciais que certamente modificam a interação de entes privados no âmbito do direito civil nos mais diversos setores da economia. Além disso, o texto proposto desenha uma nova (e, aparentemente, mais flexível) relação entre poderes constituídos, circunstância que nos parece nova em termos de legislação civil/privada.

Esse cenário é merecedor de toda a atenção dos juristas atentos ao processo legislativo como se deu até hoje.

Áreas de atuação relacionadas

Autores

Compartilhar