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A comprovação da constituição em mora do devedor em contratos garantidos por alienação fiduciária, à luz do entendimento do Superior Tribunal de Justiça
A constituição em mora em contratos garantidos por alienação fiduciária
A alienação fiduciária em garantia é um importante instrumento na esfera dos direitos reais de garantia que se caracteriza como um negócio jurídico em que o devedor (fiduciante) transmite a propriedade de um bem ao credor (fiduciário) com o intuito de garantir o adimplemento de obrigação firmada entre as partes.
Por meio da transmissão do bem dado em garantia, o fiduciário adquire a propriedade restrita e resolúvel, passando a ser tão somente o titular de um direito sob condição resolutiva e não o proprietário pleno. [1]
É certo, portanto, que tal instrumento possui natureza condicional, tendo em vista que o bem dado em garantia, conhecido como propriedade fiduciária, cessa em favor do fiduciário assim que houver o cumprimento da condição resolutiva, sem que haja a necessidade de realização de qualquer ato. [2]
Caso não haja o implemento da condição resolutiva, isto é, o adimplemento da dívida, o credor poderá promover a imediata execução da garantia que consistirá em mero exercício da pretensão possessória.
O Decreto-Lei nº 911, de 1969, com as alterações incorporadas pela Lei n.º 14.043/2014, regulamenta a alienação fiduciária em garantia e, consequentemente, a forma que se dá a constituição em mora do devedor fiduciante.
O art. 2º, § 2º, do mencionado ato normativo, prevê especificamente que “a mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento” e, em sequência, dispõe que “poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário”.
Evidencia-se que a mora possui natureza ex re por resultar do simples vencimento do prazo para pagamento e não depender de qualquer interpelação, inclusive extrajudicial, para ser configurada. [3]
A despeito da ausência de necessidade de interpelação do devedor para a constituição em mora, a sua comprovação é exigida para viabilizar exercício da pretensão possessória sobre a propriedade fiduciária por meio do ajuizamento de ação de busca e apreensão, conforme disposto no art. 3º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, que estabelece que:
o proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. (grifou-se)
Em decorrência da obrigatoriedade da comprovação da constituição em mora para o ajuizamento de ações de busca e apreensão, passaram a surgir diversas discussões nos tribunais brasileiros acerca das possíveis provas de constituição em mora em razão das peculiaridades práticas atinentes às formas de notificação.
Isso porque os julgadores acabam por interpretar de maneira distinta a previsão do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, resultando em diversos indeferimentos de petições iniciais por entenderem estarem ausentes os “requisitos” necessários para a comprovação da constituição em mora.
A diversidade de interpretações sobre o tema resultou na apreciação da temática pelo Superior Tribunal de Justiça em várias situações ao longo dos anos, como, por exemplo, quando há insuficiência do endereço fornecido pelo devedor no instrumento contratual (Agint no REsp 1.292.182/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Dje de 16/11/2016), quando o retorno do aviso de recebimento tem a indicação “mudou-se” (AgInt no AREsp 2168221/RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe de 11/11/2022) e quando há eventual extravio do aviso de recebimento (REsp 1.828.778/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 29/8/2019).
Recentemente dois julgamentos relevantes na Corte Superior aprofundaram a interpretação do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, com o intuito de conferir aos tribunais pátrios um entendimento sólido no tocante às possibilidades de notificação extrajudicial para a comprovação da mora e permitir maior celeridade e previsibilidade na recuperação de crédito das instituições financeiras.
A prescindibilidade da prova do recebimento da carta de notificação para a constituição em mora (Tema nº 1132 do STJ)
Os Recursos Especiais nºs 1.951.662/RS e 1.951.888/RS foram afetados à sistemática de recursos repetitivos para representar a controvérsia acerca da necessidade da prova do recebimento da notificação pelo devedor para a constituição em mora.
Ambos os casos concretos tratavam de situações em que a petição inicial da ação de busca e apreensão de propriedade fiduciária fora indeferida ante a ausência de constituição em mora, dado que o aviso de recebimento não possuía a assinatura do devedor fiduciante, razão pela qual o principal argumento dos recursos era a existência de dissídio jurisprudencial e violação do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969.
Na proposta de afetação foi delimitada a seguinte questão jurídica: “definir se, para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente, ou não, o envio de notificação extrajudicial ao endereço do devedor indicado no instrumento contratual, dispensando-se, por conseguinte, que a assinatura do aviso de recebimento seja do próprio destinatário”.
Incialmente, o relator, Ministro Marco Buzzi, sugeriu a fixação da tese no sentido de que a comprovação da mora se realiza com o envio de notificação extrajudicial ao endereço do devedor indicado no instrumento contratual e a sua efetiva entrega, dispensando-se que a assinatura do aviso de recebimento seja a do próprio destinatário.
Entendeu-se que, a despeito de o art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, dispor que a assinatura da carta não precisa ser do devedor, a orientação jurisprudencial até o momento teria se firmado no sentido de exigir a efetiva entrega.
Em divergência ao posicionamento do relator, o Ministro João Otávio de Noronha apresentou um voto-vista em que sugeriu a seguinte tese a ser firmada: “é suficiente o envio de notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no instrumento contratual, dispensando-se a prova do recebimento, quer seja pelo próprio destinatário, quer por terceiros”.
Observa-se que o principal ponto de divergência entre os entendimentos consiste na necessidade ou não de haver a comprovação da efetiva entrega (ao devedor ou a terceiros), uma vez que o Ministro Marco Buzzi entende como necessária e o Ministro João Otávio de Noronha entende que somente é necessária a demonstração do envio da notificação ao endereço indicado no instrumento contratual.
Isso porque, diferentemente do relator, o Ministro João Otávio de Noronha, em interpretação literal do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, reconheceu que se exige tão somente o vencimento do prazo para pagamento para a constituição em mora, especialmente porque o próprio texto afirma que basta “simples vencimento” para a constituição da mora.
Para além disso, registrou que, no dispositivo em discussão, no trecho “poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário”, houve a escolha do vocábulo “poderá” em vez de “deverá”, ou seja, não há qualquer obrigatoriedade quanto à forma de comprovação.
Evidenciou-se, portanto, que a lei somente exige que seja comprovado o envio da notificação extrajudicial ao endereço do contrato, sendo desnecessária qualquer prova do recebimento.
Em razão da divergência, o Ministro relator pediu vista regimental para apresentar um novo voto em que reiterou o seu entendimento e registrou que a exigência da lei quanto à notificação via “carta registrada, com aviso de recebimento” permite inferir que seria necessária a prova do efetivo recebimento.
Em resposta, o Ministro João Otávio de Noronha reiterou que a literalidade do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, não permite qualquer interpretação no sentido de que seria necessária a comprovação do recebimento e pontuou que estabelecer tal requisito ultrapassaria a funcionalidade da Corte Superior por estar impondo ao credor obrigação não constante do texto da lei.
Ao final na deliberação da Segunda Seção, todos os Ministros presente votaram com o Ministro João Otávio de Noronha, restando vencido o relator Ministro Marco Buzzi, para fixar a seguinte tese no Tema nº 1.132: “Para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente o envio de notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no instrumento contratual, dispensando-se a prova do recebimento, quer seja pelo próprio destinatário, quer por terceiros”.
A Segunda Seção do STJ, portanto, passou a adotar o entendimento de que o art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, deve ser interpretado no sentido de que a notificação extrajudicial por meio de carta exige, tão somente, a comprovação de envio.
A possibilidade de notificação extrajudicial por correio eletrônico para a comprovação da constituição em mora (Recurso Especial nº 2.087.485/RS)
O Recurso Especial nº 2.087.485/RS foi interposto por uma instituição financeira em que defende que “a simples entrega da notificação digital devidamente válida para o endereço eletrônico fornecido pela devedora mostra-se suficiente para configurar a mora”.
A ação originária de busca e apreensão foi julgada extinta, sem resolução do mérito, por ausência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, sob a justificativa de a notificação extrajudicial não ter sido efetivada na forma prevista no art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve integralmente a sentença por entender que a notificação eletrônica não é meio idônea para comprovar a constituição em mora do devedor, ensejando a interposição do recurso especial.
No âmbito do STJ, cinge-se a controvérsia na discussão acerca da possibilidade de comprovar a constituição em mora por meio da notificação extrajudicial enviada para o endereço eletrônico indicado pelo devedor fiduciante no instrumento contratual.
O relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira, ao interpretar o art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969, compreendeu que existem dois requisitos de validade da notificação, quais sejam (i) a notificação extrajudicial do devedor; e, (ii) a prova de seu recebimento.
A partir da interpretação analógica do mencionado dispositivo, considerou suficiente a notificação enviada por correio eletrônico desde que seja encaminhada ao endereço eletrônico indicado no contrato e comprovado seu recebimento, independentemente de quem a tenha recebido.
O voto do relator, acompanhado por unanimidade pelo restante dos integrantes da Quarta Turma, expressamente divergiu da Terceira Turma, que entendia que não seria possível a notificação extrajudicial somente por correio eletrônico em razão da inexistência de regulamentação ou certificação do sistema de comprovação do recebimento.
Isso porque a Quarta Turma entendeu não ser razoável a exigência de uma nova regulamentação normativa a cada inovação tecnológica que facilite a comunicação e as notificações para sua utilização como prova judicial, sob pena de subutilização da tecnologia desenvolvida.
Nesse cenário, reconheceu-se ser possível a notificação extrajudicial do devedor fiduciante por correio eletrônico para comprovar a constituição em mora para fins de ajuizamento de ação de busca e apreensão.
Para além do novo entendimento adotado na Corte Superior, o anteprojeto de reforma do Código Civil apresentou uma sugestão de alteração do art. 397 do CC, que atualmente prevê que “o inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor”.
A sugestão consiste na inclusão de um parágrafo que disporá que “as partes podem admitir, por escrito, que a interpelação possa ser feita por meios eletrônicos como e-mail ou aplicativos de conversa on-line, após ciência inequívoca da mensagem pelo interpelado”.
Caso a sugestão de alteração do art. 397 seja mantida e aprovada pelo Congresso Nacional, a regulamentação normativa exigida pelo entendimento da Terceira Turma será concretizada para sedimentar o posicionamento adotado Quarta Turma, segundo o qual é possível a notificação eletrônica desde que seja comprovado o recebimento da mensagem.
Conclusão
A comprovação da constituição em mora na alienação fiduciária em garantia é essencial para viabilizar o exercício da pretensão possessória do credor sobre a propriedade fiduciária, conforme disposto no art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969.
É imprescindível, portanto, que a jurisprudência seja clara e uniforme no tocante às possibilidades de notificação extrajudicial para garantir maior celeridade no processo de recuperação de crédito das instituições financeiras e evitar o indeferimento de petições iniciais de ação de busca e apreensão por ausência de comprovação da constituição sem a devida justificativa.
Os julgamentos do Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais Repetitivos nºs 1.951.662/RS e 1.951.888/RS e no Recurso Especial nº 2.087.485/RS consolidaram a orientação jurisprudencial no sentido de permitir a comprovação de constituição em mora por carta sem a necessidade de prova do recebimento, bem como a possibilidade de notificação extrajudicial por meio de correio eletrônico, reconhecendo-se a necessidade de adaptação dos sistemas aos avanços tecnológicos sem depender da regulamentação normativa.
Evidencia-se, assim, que os referidos julgamentos representaram grandes avanços na sedimentação das discussões quanto ao tema e possibilitaram melhor compreensão quanto à interpretação do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911, de 1969.
Autora: Sofia Costa Carvalho
Referências bibliográficas
[1] GOMES, Orlando. Direitos Reais – 21ª Edição 2012. Rio de Janeiro: Forense, 2012. E-book. p.359. ISBN 978-85-309-4392-9. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/978-85-309-4392-9/. Acesso em: 29 nov. 2024.
[2] PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil – Vol. IV – 29ª Edição 2024. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.332.
[3] TEPEDINO, Gustavo; FILHO, Carlos Edison do Rêgo M.; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do Direito Civil – Vol. 5 – Direitos Reais – 5ª Edição 2024. 5th ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.517. ISBN 9786559649365. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559649365/. Acesso em: 29 nov. 2024.