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Análise do ARE 1.309.642 e a não obrigatoriedade do regime de separação obrigatória de bens para maiores de setenta anos.
Em decisão recente, o pleno do Supremo Tribunal Federal julgou o Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.309.642, com repercussão geral, em que se discutia a constitucionalidade do disposto no art. 1.641, inciso II, do Código Civil, que impõe o regime da separação obrigatória no casamento de pessoas maiores de 70 anos, bem como a sua aplicação às uniões estáveis.
Na origem, tratava-se de ação de inventário inaugurada pelos filhos do falecido, na qual foi requerido o ingresso de sua convivente como meeira e herdeira. Iniciou-se, então, discussão acerca do regime de bens a ser aplicado à união estável iniciada quando o falecido já possuía mais de setenta anos.
Em primeiro grau, foi declarada a inconstitucionalidade incidental do art. 1.641, inciso II do Código Civil, que dispõe o seguinte:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
O fundamento da decisão foi de que referido dispositivo fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, uma vez que a presunção que deve prevalecer é de que as pessoas com mais de 70 anos são plenamente capazes para todos os atos da vida civil, incluindo a livre disposição de seus bens.
Assim, afastada a incidência do dispositivo declarado inconstitucional, o regime supletivo a ser aplicado à união estável seria o da comunhão parcial de bens, conforme previsão do art. 1.725 do Código Civil, de modo a reconhecer o direito da companheira supérstite da participação da sucessão hereditária.
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
A decisão aplicou entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal em decisão proferida em sede de repercussão geral no RE 646721/RS, quando se firmou a tese é de que “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
Ao julgar o agravo de instrumento interposto pelos herdeiros do falecido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reformou a decisão, entendendo pela aplicação, por analogia, do disposto no art. 1.641, inciso II, do CPC, devendo prevalecer o regime de separação de bens, em prestígio à opção legislativa de restringir a autonomia da vontade no intuito de “proteger a pessoa do idoso e seus herdeiros necessários de casamentos realizados única e exclusivamente por interesses econômico-patrimoniais”.
No entanto, aplicando a orientação firmada na Súmula nº. 377 do STF, o tribunal garantiu à companheira o direito à metade dos bens adquiridos durante a constância da união estável.
Opostos embargos de declaração, posteriormente rejeitados, a recorrente interpôs recursos especial e extraordinário, que foram inadmitidos.
Interposto agravo contra a decisão que não admitiu o recurso especial, o recurso não foi conhecido ante a ausência de impugnação específica. Ato contínuo, os autos foram encaminhados ao Supremo Tribunal Federal, para processamento do agravo em recurso extraordinário, que foi distribuído ao Ministro Luís Roberto Barroso.
O Tribunal, por maioria, reconheceu haver discussão de natureza constitucional e declarou a existência de repercussão geral (Tema 1.236), convertendo o agravo em recurso extraordinário, conforme descrito abaixo:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, III, 30, IV, 50, I, X, LIV, 226, § 3º e 230 da Constituição Federal, a constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos, e a aplicação dessa regra às uniões estáveis, considerando o respeito à autonomia e à dignidade humana, a vedação à discriminação contra idosos e a proteção às uniões estáveis.
Nos autos do recurso extraordinário, sustentou-se a inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II do CPC, por violação aos princípios da dignidade e da igualdade, ao fundamento de que a presunção é de que pessoa de 70 anos ou mais é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil, incluindo a administração de bens. O recurso ainda defendia que a aplicação do disposto no art. 1.641, inciso II, do CPC seria restrita ao casamento, não se aplicando à união estável.
Definidas as questões controvertidas, o relator iniciou a fundamentação de seu voto registrando o entendimento de que a norma legal que impede a prática de atos da vida civil e viola o princípio da autonomia individual, disse o relator:
No fundo, esse art. 1.641, inciso II, está ali para proteger os herdeiros. Está-se impedindo uma pessoa maior e capaz de manter com a pessoa que escolha para repartir a sua vida o regime que melhor lhe aprouver em benefício de terceiros.
O relator entendeu, ainda, que a possibilidade de escolha do regime de bens deve ser ampliada para englobar as uniões estáveis, ressaltando que esse já era o entendimento do Supremo Tribunal Federal equiparar.
Apesar disso, o voto destacou a possibilidade de interpretação do dispositivo conforme à Constituição, admitindo sua aplicação caso não haja convenção das partes em sentido oposto. Resumidamente, entendeu que “o dispositivo vale se as partes não convencionarem de maneira diferente. Se convencionarem de maneira diferente, essa norma pode ser derrogada (…)”.
Para o caso em comento, considerando a ausência de manifestação do falecido que vivia em união estável no sentido de afastar a previsão legal, o STF conferiu aplicação ao dispositivo, e com essa interpretação, negou provimento ao recurso extraordinário.
Em relação à tese a ser firmada, propôs:
Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de setenta anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641-II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.
Durante seu voto, observou que a presente decisão tem efeitos prospectivos, e em atendimento ao princípio da segurança jurídica, resguardando o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, eventuais alterações de regimes de bens somente produzirão efeitos patrimoniais para o futuro.
O ministro Cristiano Zanin, acompanhando o voto do relator, destacou que
A rigor, ausente a possibilidade de convenção antenupcial, nos casos previstos no âmbito do art. 1.641, do CC, tanto das pessoas maiores de setenta anos, como também das pessoas que contraírem casamento sem observar as causas suspensivas de celebração e daquelas que dependerem de suprimento judicial para se casar, há limitação da autonomia da vontade dos nubentes.
Discorreu que a imposição da separação obrigatória se deve “à crença de que a partir de uma certa idade as pessoas podem ser mais facilmente enganadas e atrair relacionamentos por interesse financeiro”.
Segundo o ministro, a proteção dos bens em detrimento da autonomia da vontade do maior de setenta anos violaria os preceitos constitucionais da igualdade (art. 5º, inciso I), vedação à discriminação em razão da idade (art. 3º, inciso IV) e dever de amparo à pessoa idosa (art. 230), bem como o livro exercício de sua personalidade e da dignidade (art. 1º, inciso III).
Destacou que se observa, atualmente, um aumento na expectativa de vida da população, o que exigiria especial atenção quanto ao tratamento conferido à população idosa, visando a evitar o etarismo, caracterizado pela discriminação às pessoas baseando-se na idade, e que a presunção de perda da capacidade cognitiva ou a incapacidade para o exercício dos atos da vida civil seria clara manifestação desse preconceito.
Para ele, a restrição da autonomia da vontade e do direito de escolha do regime de casamento seria “considerado incompatível com o sistema de capacidade estabelecido pelo direito civil”.
Concluiu indicando que a interpretação literal do artigo em comento, como norma cogente, privilegiaria o patrimônio em detrimento a questões de foro íntimo da pessoa, bem como caracterizaria intervenção excessiva do Estado na liberdade individual. Também concluiu pela extensão desse entendimento às uniões estáveis, pois com o advento da Constituição Federal de 1988, reforçou-se o reconhecimento das “distintas formas de entidade familiar”.
A hermenêutica constitucional, baseada na dignidade, igualdade e liberdade, respeita a esfera de atuação privada e íntima na qual essas relações são desenvolvidas. Por isso, a atuação do Estado nesse campo baseia-se no dever de proteção e no princípio da mínima intervenção, com respeito à autonomia privada, expressão da liberdade individual das pessoas, garantida pelo art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988
Diante disso, em sua visão, não haveria que se falar em diferenciação entre “a entidade familiar fundada na solenidade do casamento e aquela construída por meio de união estável”, citando-se o Tema 809, julgado também pela Corte, acerca da validade de dispositivos do Código Civil que atribuem direitos sucessórios distintos ao cônjuge e ao companheiro.
É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002
Apesar disso, entendeu pela possibilidade de manutenção do texto original, utilizando-se do que o ministro chamou de “balizas interpretativas”, de modo a adequar a norma à constituição. Para tanto, a obrigatoriedade do regime de separação de bens incidiria apenas quando não houvesse manifestação dos nubentes em sentido contrário.
Ao caso concreto, considerando ausência de manifestação do casal para afastar a previsão do art. 1.641, inciso II do Código Civil, negou provimento ao recurso extraordinário, acompanhando o relator.
Propôs a modulação dos efeitos da decisão, resguardando-se o casamento ou união estável envolvendo pessoa maior de setenta anos cuja aplicação do artigo em debate impôs a obrigatoriedade do regime de separação, ainda na mesma oportunidade, o ministro destacou a possibilidade de alteração do regime de bens desde que cumprida os requisitos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil.
Ainda nessa proposta de modulação, a admissão de expressa manifestação dispondo sobre regime de bens diverso em uniões envolvendo pessoa maior de setenta anos terá eficácia apenas a partir da publicação da ata do acórdão deste julgamento.
Acompanhando o voto do min. Relator, o ministro André Mendonça (vogal), aproveitou para destacar que a formalidade proposta, obrigatoriedade de escritura pública para alteração de regime, visa “garantir a livre manifestação das pessoas no sentido do que melhor lhes convier na formalização do casamento ou da própria união estável (…)”.
Por sua vez, o ministro Nunes Marques, entendeu não incorrer violação constitucional à previsão advinda do art. 1.641, inciso II, do Código Civil.
Para ele, não haveria violação ao princípio da isonomia, também conhecido como princípio da igualdade, considerando que é permitido pela Constituição Federal a chamada discriminação positiva, ou seja, o tratamento diverso a certos grupos sociais menos favorecidos como maneira de alcançar a igualdade material.
Em se tratando de pessoa idosa, na visão do ministro, seria legítimo, constitucionalmente, o uso da idade, desde que de maneira não arbitrária ou desarrozoada, como parâmetro para diferenciação.
Destacou a necessidade de preservar os direitos à propriedade (CF, art. 5º, inciso XXII) e à herança (CF, art. 5º, inciso XXX), entendendo que a opção do legislador em fixar a obrigatoriedade do regime de separação de bens foi o meio encontrado para a proteção do patrimônio na “fase da vida em que o ser humano está mais vulnerável”.
Ressaltou, ainda, que não haveria impedimento para que a pessoa maior de setenta anos dispusesse de seu patrimônio ainda em vida, inclusive por meio de testamento, caso o quisesse fazer.
Ante o resultado alcançado no RE 646.721, leading case do Tema 489 (o qual teve a mesma tesa fixada pelo Tema 809), entendeu impossível a distinção de regime entre cônjuges e companheiros, de modo que “deve ser aplicado, tanto na hipótese de casamento quanto na de união estável de pessoa maior de 70 (setenta) anos, o regime de separação obrigatória de bens (CC/2002, art. 1.641, inciso II).”
Ao caso concreto, o ministro negou provimento ao recurso extraordinário.
O ministro Alexandre de Moraes, em embasado voto, acompanhou integralmente o relator, negando provimento ao recurso extraordinário.
Para o ministro, os tratamentos diferenciados previstos em lei são constitucionais desde que tenham sua necessidade verificada, sendo que o oposto se produziria quando identificada a existência de “normas que criem diferenciações abusivas, arbitrárias, sem qualquer finalidade lícita”.
Lidando com o tratamento isonômico específico às pessoas idosas, o ministro destacou que
(…) embora a pessoa idosa materialize um eixo específico de proteção, sobretudo no plano constitucional, não parece razoável restringir sua autonomia e sua liberdade em função de um instituto que acaba por tomar a forma da condescendência e do patrimonialismo.
Em sua visão, a restrição da autonomia da vontade resultaria na violação de diversos dos princípios constitucionais, como o da liberdade, da dignidade humana e da isonomia, por impor uma distinção desproporcional a partir da idade dos nubentes.
Para ele, apesar das considerações, entendeu que seria possível a conservação da norma, desde que interpretada conforme a Constituição Federal, prevalecendo quando não houver convenção das partes em sentido diverso.
Dito de outro modo, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, apenas se aplica nos casos em que não houver expressa manifestação dos cônjuges em sentido contrário. Portanto, de modo a reguardar [sic] a liberdade individual, o regime pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes
Para o ministro Edson Fachin, a norma impugnada seria inconstitucional, por distinguir os maiores de setenta anos do restante da população, o que tornaria o dispositivo discriminatório, visto que a criação de “distinções injustificadas ou injustas são conflitantes com os princípios constitucionais da dignidade humana e da isonomia”.
Para ele, o idoso, conforme lhe garantido pela Lei 10.741/2003 – Estatuto do idoso (a qual vedou qualquer discriminação em razão de idade), teria plenas condições de escolher o melhor regime patrimonial que lhe couber, da mesma forma que tem o discernimento para escolher a pessoa com a qual deseja contrair o matrimônio.
A inconstitucionalidade da norma, ainda, submeteria as pessoas maiores de setenta anos a “uma espécie de interdição compulsória, com afronta aos princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana e da liberdade de construir entidade familiar”.
Apesar das considerações feitas, visando assegurar a segurança jurídica, destacou a declaração de inconstitucionalidade do art. 1641, inciso II, do Código Civil teria efeitos prospectivos, diante disso, negou provimento ao recurso extraordinário, seguindo o voto do min. Relator.
Na visão do ministro Luiz Fux, haveria inconstitucionalidade na regra imposta pelo artigo em comento.
Em seu voto, salientou que a escolha de impor o regime de bens a partir de setenta anos não foi realizada por meio de elementos científicos, se tratando de mera arbitrariedade por meio do legislador. E que referida determinação se traduz na “presunção de incapacidade relativa para escolha livre e consciente do regime de bens ao se contrair matrimônio.”
Destacou ainda, que essa mesma presunção de incapacidade (ou falta de legitimação), não ocorre para os demais atos da vida civil, citando como exemplo a realização de contratos de compra e venda, empréstimos com garantia, doações ou mesmo o direito ao voto.
Para ele, a menos que houvesse indícios reais de incapacidade, impossível essa presunção apenas pelo critério etário.
(…) é importante frisar que o ordenamento jurídico não ceifa a possibilidade de proteção do patrimônio dos idosos ao contraírem matrimônio. Isto porque, não se afasta a possibilidade do instituto da interdição, porém para sua incidência devem estar preenchidos todos os requisitos legais, não bastando apenas o decurso da idade como um fator de limitador da capacidade do idoso.
Como solução ao caso concreto, entendeu por julgar improcedente o pedido, considerando que, apesar da inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II do Código Civil e da previsão do art. 1.640 do Código Civil de que, não havendo convenção entre as partes, deve-se aplicar o regime de comunhão parcial de bens, não houve expressa deliberação por meio das partes na escolha do regime de bens diverso.
Quanto aos casamentos já realizados, entendeu o ministro que terão o regime de bens mantidos e apenas poderão ser alterados por meio de escritura pública.
Os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes (vogal) e a ministra Cármen Lúcia (vogal) também acompanharam o voto do min. Relator.
Restou fixada a tese de que a previsão de regime de bens do art. 1.641, inciso II do Código Civil pode ser afastada por expressa e qualificada manifestação de vontade das partes, inclusive no que se refere à união estável.
No caso concreto, por unanimidade, negou-se provimento ao recurso extraordinário.
Em seguida, apreciando o tema 1.236, de repercussão geral, foi fixada a seguinte tese:
Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.
O acórdão transitou em julgado em 10/04/2024.
Autora: Alicia Paola Alves Possadas
¹ Neves, Daniel Amorim Assumpção, Novo Código de Processo Civil, 3.ed.rev, atual. e ampl., – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, pág. 414