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A relevância de uma regulamentação segura no aluguel de ações
O aluguel de ações é operação na qual, mediante consenso acerca de uma taxa de remuneração, o detentor de ações (doador do empréstimo) autoriza sua transferência a um terceiro (tomador do empréstimo).
Por meio dessa operação, o tomador pode utilizar esses ativos como lhe aprouver (inclusive pode vendê-los), mas é obrigado a devolvê-los ao doador quando verificado o termo (prazo) da operação.
Isso significa dizer que, durante o prazo estipulado da operação, o “doador” das ações perderia sua condição de acionista, transferindo os direitos inerentes à posição acionária ao tomador.
Assim como acontece na compra e venda de ações, por meio do cruzamento de informações, localiza-se um pretenso tomador (isto é, a operação é, em regra, impessoal), que tenha imputado no sistema de sua corretora dados compatíveis com a intenção do doador.
A matéria é atualmente regulada: (1) pela Resolução CVM nº 34, de 19 de maio de 2021[2], que, em seu artigo 4º, § 1º, inciso II, obriga as câmaras e prestadores de serviço de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários autorizadas pela CVM à edição de regulamento que discipline o tratamento a ser conferido aos direitos inerentes aos valores mobiliários utilizados na operação de empréstimo; e (2) pela Resolução CMN nº 4.952, de 30 de setembro de 2021, que dispõe sobre a atuação das câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro.
A primeira explicação pertinente diz respeito ao motivo pelo qual alguém se interessaria por “adquirir temporariamente” (isto é, tomar emprestado) ações.
A questão diz respeito a estratégia de investimento.
As definições das intenções seguem uma ordem geral do que normalmente acontece: (1) de um lado, o doador possui estratégia de longo prazo, isto é, não tem intenção de vender sua posição acionária, mas deseja perceber remuneração adicional (além dos dividendos e bonificações); (2) de outro lado, o tomador avalia (correta ou erroneamente, e no limite das informações que possui e do que sobre elas infere) que as ações estão mal precificadas e as aluga para vender, e, em seguida, recomprá-las por um preço menor e devolver ao doador (em D+3) a posição que ele possuíra.
Outra estratégia de investimento que tem sido motivadora da realização de operações de aluguel de ações é a venda a descoberto, operação que pode ser definida como aquela em que alguém vende um ativo sem possuí-lo na carteira, para recomprá-lo ulteriormente até um horário limite predeterminado pela agência corretora.
O prazo do aluguel é de, no mínimo, 1 (um dia) e de, no máximo, 2 (dois) anos. Imagine-se a seguinte hipótese: o investidor “A” tem (ou acredita ter) razões para estimar que as ações da companhia “B”, hoje cotadas a R$ 100,00 (cem reais), cairão, dentro de uma semana, para R$ 80,00 (oitenta reais). O que “A” faz é vender ações que ainda não possui (por isso, “a descoberto”, ou, no jargão do mercado, “short”, ou, ainda, “short selling”) e tomá-las emprestado antes do prazo de “entrega” aos adquirentes.
O tomador, por sua vez, pode utilizar as ações que lhe foram transferidas para realizar uma série de operações (inclusive e principalmente o já mencionado short selling).
O volume de contratos pode ser consultado em margens temporais inclusive diárias. Assim, como sugestão de análise de volume, veja-se quatro exemplos de companhias de setores distintos, todos extraídos para o dia 06/09/2023[1]. Nessa data, foram negociados: (1) R$ 1.160.519,89 de OIBR3 (Oi S.A.); (2) R$ 14.695.978,32 para LREN3 (Lojas Renner S.A.); (3) R$ 45.591.081,11 para EZTC3 (EZTEC Empreendimentos S.A.) e (4) R$ 276.018.923,75 para ABEV3 (Ambev S.A.).
Uma informação que se pode extrair dos dados acima é que, em único dia, selecionando-se apenas quatro companhias, negociou-se cifras milionárias. Veja-se: não se está a sustentar que uma operação de baixa monta não demande segurança jurídica, mas sim que o fato de haver um mercado pujante no Brasil demanda que aquela operação seja analisada com cuidado, a fim de se permitir o favorecimento da ordem econômica (artigo 170 da Constituição Federal de 1988).
Apesar disso, de rigor observar que a principal lei de regência das sociedades anônimas, a Lei Federal nº 6.404/1976, não fornece o conceito de ação (e o raciocínio que se constrói é: como se avaliar criticamente o acerto ou desacerto da regulação de algo que o legislador não conceitua?). Limita-se a mencionar, em seu art. 11, que a ação é fração do capital da sociedade. Por sua vez, a Lei Federal nº 6.385/1976, em seu art. 2º, inc. I, identifica as ações como valores mobiliários, também sem defini-las.
A expressão “valores mobiliários” advém, inicialmente, de inspiração do Direito francês e, ulteriormente, do Direito estadunidense. Naquele, a expressão deriva de valeurs mobilières, que se contrapõe aos chamados effects de commerce, estes últimos correspondentes ao que temos por títulos de crédito. Já no Direito estadunidense, a ideia de valor mobiliário deriva do termo security definido no Securities Exchange Act, de 1934, que listou uma série de documentos correntemente negociados nos mercados estadunidenses, os quais, pela prática, convencionou-se designar de securities.
Fôssemos seguir a lógica do Direito estadunidense, diríamos, sucintamente, que “valor mobiliário é aquilo que tradicionalmente se entende por valor mobiliário”. O que é realmente relevante para o desenvolvimento do raciocínio ora exposto é que se compreenda que a ação, quer se lhe confira ou não a qualidade de valor mobiliário, implica complexo de direitos e obrigações para seus proprietários, complexo este que, em regra, seria indivisível (art. 28 da Lei Federal nº 6.404/1976).
A controvérsia sobre o tema surgiu no âmbito do Processo CVM RJ nº 2012-0249, em que, no contexto de uma reorganização societária de companhias abertas, emitiu-se ao mercado Comunicado esclarecendo que caso a titularidade de ações detidas em determinada data tivesse sido transferida, inclusive em virtude de contrato de mútuo de ações (‘aluguel de ações’), o acionista não poderá exercer o direito ao reembolso com relação às ações mutuadas, uma vez que, na forma da lei, o mútuo acarreta a efetiva transferência da titularidade das ações do mutuante ao mutuário” [4]. Na sequência, por força da divulgação de Fato Relevante das companhias abertas em reorganização, infirmou-se que o valor de reembolso a ser pago pelas ações aos acionistas dissidentes seria maior que o valor contábil que referidas ações possuíam. Esse desbalanceamento levou os acionistas a questionarem as companhias acerca da necessidade de manutenção da titularidade das ações para fins de exercício do direito de recesso e até que momento seria possível se utilizar de tal faculdade.
Isto é, indagava-se se o acionista que transfere as ações em aluguel (daí deriva, a relevância da compreensão de sua natureza jurídica) detém ou não o direito do exercício de recesso em relação a elas. Nesse mister, já se mencionou que a ação possui, como regra, a indivisibilidade; outro caractere importante de se observar é a sua fungibilidade. Isso porque, se a ação fosse compreendida tão somente como bem infungível, o tomador não poderia dispor livremente daquelas que foram alugadas, porque isso inviabilizaria o retorno do doador ao status quo ante quando da liquidação da operação. Ao se exigir a devolução das ações de emissão da mesma companhia e na mesma quantidade, espécie e qualidade (art. 4º, § 1º, da Res. CVM 34/2021) de rigor reconhecer que se trata de bem fungível (ao menos para a finalidade da operação), possuindo os agentes de custódia sua propriedade fiduciária (art. 41 da Lei Federal nº 6.404/76).
No aluguel de ações, o doador transmite a propriedade fiduciária de suas ações com o fito de a sociedade corretora ou distribuidora de títulos repassar sua custódia à Câmara de Ações, que atuará como clearing house, a fim de que se transfira a posição acionária a tomador que lance, por meio de seu intermediário, oferta compatível a ser encontrada pelo sistema BTC. Até que tal cruzamento de dados (no jargão do mercado, “agressão”) se efetive, as ações custodiadas permanecerão em depósito na conta de custódia, de modo que o depósito das ações na Câmara de Ações/CBLC pelo agente de custódia, a mando do investidor doador, combina elementos tanto do contrato de mandato, quanto do depósito regular. Como restou consignado no Parecer PJU nº 001/2000 da CVM:
“a custódia fungível de ações é depósito regular por disposição legal, porque, apesar de receber as ações como valores fungíveis (art. 41 da Lei nº 6.404/76), o depositário não pode dispor das ações depositadas e fica obrigado a restituir ao depositante a mesma quantidade de ações recebidas (…). Destaca-se que é irrelevante para a configuração do depósito como regular que as ações sejam recebidas na custódia como coisas fungíveis, porque fora dela mantém a sua infungibilidade. (…) Na relação que se estabelece, apenas a posse imediata das ações é transferida ao depositário, que não pode obstar o exercício do direito de propriedade do depositante. (…) Além de depósito regular, é também depósito voluntário, que se aperfeiçoa por um contrato escrito [o Termo de Autorização de Cliente, no caso do aluguel de ações] (art. 1.281 do CC), de caráter real, mercantil, bilateral e oneroso (…). Acresce ao já exposto que a relação jurídica que se forma entre depositante e depositário (depósito regular), presente nas relações emergentes da custódia fungível de ações, funda-se essencialmente no elemento confiança, motivo pelo qual qualquer abalo neste elemento intrínseco daquela relação jurídica deve obrigatoriamente comportar a devolução da coisa objeto do depósito. (…) A relação entre o acionista depositante e a corretora é de mandato, no que respeita à custódia fungível de ações. (…) Cabe lembrar ainda que a perda da confiança na custódia fungível significaria um paradoxo em relação aos fundamentos históricos da sua criação, que teriam sido promover a centralização da guarda de títulos, para fortalecer a segurança e ampliar a eficiência do mercado, diminuindo o risco de extravio de valores e aumentando a liquidez no mercado, na medida em que colaboraria para o processo de “desmaterialização” dos títulos no Brasil. [5]
Cabível, contudo, crítica quanto à ideia de transmissão da “propriedade fiduciária”, uma vez que, a esta espécie, se aplicaria o disposto nos arts. 1.361 a 1.368-A do CC/2002 e somente tem por objeto bens infungíveis, o que se aplicaria apenas às ações nominativas.
A ideia de contrato de guarda, que parece-nos mais compatível com a realidade do aluguel de ações, colocaria uma pá de cal na questão da fungibilidade. Com efeito, a interpretação do art. 41 da Lei Federal nº 6.404/1976 diante da estrutura do aluguel de ações dá a entender que se transfere a custódia de um bem fungível, mas, enquanto durar a custódia, sua relação com a corretora lhe dará tratamento de bem infungível, e, após transferida a posição acionária ao tomador, “tornará” a ação a ter tratamento fungível.
Cumpre, então, para melhor compreensão enumerar o rol de relações envolvidas no aluguel de ações:
a. O investidor doador de ativos tem de firmar “Termo de Autorização de Cliente” com seu agente de custódia, autorizando-o a representá-lo em operações de aluguel de valores mobiliários e permitindo a transferência dos ativos para sua conta de empréstimo mantida junto ao Serviço de Depositária da Câmara (“relação 1”);
b. Os agentes de custódia doadores de ativos (cuja própria terminologia, adotada pela BM&FBOVESPA, indicia a ausência de vínculo contratual (ao menos direto) entre os investidores finais, consoante expresso no art. 9º da Res. CVM nº 34/2021) têm de firmar com a Câmara o “Termo de Adesão ao Banco de Títulos da Câmara – Agentes de Custódia da Câmara/’, autorizando expressamente o aluguel e a transmissão de seus ativos para sua conta de empréstimo na Câmara (“relação 2”);
c. O investidor tomador de ativos tem de firmar o “Termo de Autorização de Cliente” autorizando expressamente o Participante de Negociação a representá-lo em operações de empréstimo e a transferência dos Ativos recebidos em empréstimo para uma Conta de Custódia especificada (“relação 3”);
d. Os participantes de negociação tomadores e doadores de ativos devem firmar com a Câmara um “Termo de Adesão ao Banco de Títulos da Câmara – Participante de Negociação”, autorizando expressamente o empréstimo e/ou a doação, e a transferência de seus ativos para sua Conta de Custódia ou conta de empréstimo mantida junto ao Serviço de Depositária da Câmara, conforme o caso (“relação 4”).
Examina-se relação por relação.
A relação 1 combina, a um só tempo, elementos do mandato e do depósito regular.
A relação 2, por sua vez, possui natureza jurídica de mandato com representação, estando o depositário autorizado a transferir para sua conta de empréstimo na Câmara de Ações as ações a serem alugadas.
A relação 3, do mesmo modo, possui natureza jurídica de mandato, no âmbito do qual devem se ressaltar certas obrigações do tomador, a saber, aquelas estipuladas na Lei Federal nº 10.214, de 27 de março de 2001, concernentes à liquidação do aluguel de ações [6], a fim de que aquele que recebe a posição acionária se responsabilize pela restituição do doador a seu status quo ante. Para tanto, inclusive, reitere-se que o tomador deve caucionar a operação em de modo suficiente, ex vi do art. 4º, § 1º, III, da Res. CVM nº 34/2021.
Para que a reflexão a respeito da qualificação jurídica do rol de direitos e obrigações caracterizar da operação efetivamente desejada (“relação 4”), necessário compreender com um pouco mais de profundidade o papel da Câmara de Ações (a quem a Circular nº 3773, de 1º de dezembro de 2015, do BACEN atribui, ao alterar a redação do art. 11-A do Regulamento Anexo à Circular nº 3.057 de 31 de agosto de 2001, a condição de “parte contratante para fins de liquidação das obrigações, realizada por seu intermédio, ressalvado o risco de emissor”), detentora da propriedade fiduciária (ou guarda, como defendemos) dos ativos até que se concretize a operação.
Chama-se a atenção para o fato de que o ente que possui a dita propriedade fiduciária transfere ao tomador o domínio pleno das ações emprestadas, tanto que este as usa, entre outras razões, para cobrir vendas a descoberto. E mais: pode-se imaginar sem maiores celeumas situação em que o tomador não deseje vender a descoberto, mas, num momento ulterior, durante a vigência do aluguel, decida alienar as ações, e é livre para fazê-lo.
Utilizando-se a concepção de guarda, e, portanto, resolvendo-se a questão da “propriedade fiduciária”, o problema que ocorre, para fins de qualificação jurídica da “relação 4”, completando a caracterização do aluguel de ações, é outro: a Res. CVM nº 34/2021, em seu art. 2º, § 1º, aduz que entidades de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários autorizadas pela CVM a prestar serviço de custódia” poderão editar regulamento a respeito do serviço de empréstimo de ativos e esse regulamento estará disponível na Internet.
O poder normativo da CVM, por sua vez, decorre de interpretação conjunta do art. 174, 177, §2º, III da Constituição Federal de 1988, e art. 8º, I, 15 e 18, II, da Lei Federal nº 6.385/76. Uma vez autorizada a editar instruções regulamentadoras de operações na bolsa e no mercado de balcão, de rigor que podia a CVM editar a Res. Nº 34/2021 e, nesse ínterim, dispor que às clearing houses incumbiria a normatização adicional. Referido entendimento também decorre do disposto no art. 8º, §1º da Lei Federal nº 6.385/76 e da Resolução do Banco Central do Brasil nº 3.539, de 28 de abril de 2005.
Analisando as clearing houses do ponto de vista funcional, Luiz Carlos STURZENEGGER[7] afirma que:
A função dessas câmaras é garantir a finalização das operações, com a transferência dos valores para quem de direito e a redução dos riscos para os participantes de seu sistema. Para tanto, utilizam-se dos instrumentos da compensação bilateral ou multilateral, operando a liquidação por contabilidade, mediante encontro de contas. Evitam-se, assim, os pagamentos por caixa de cada um dos instrumentos financeiros girados, havendo a transferência real de fundos, quando necessária, somente após a apuração do saldo residual das contas (ativas ou passivas) entre as instituições participantes do sistema. Nos ambientes sistemicamente relevantes, as clearings houses, além de possibilitarem a compensação dos créditos recíprocos, desempenham também importante papel na contenção dos riscos de crédito e de liquidação entre os participantes. Os contratos originalmente celebrados entre esses participantes, por intervenção obrigatória da clearing house, desaparecem, passando a clearing a ser a parte compradora de todos os vendedores e a parte vendedora de todos os compradores. Assim, a incapacidade de cumprimento das obrigações de uma das partes no contrato originalmente celebrado não representa o não recebimento daquela prestação pela sua contraparte, visto que a clearing house, tendo dado curso à operação, estará a garantir o cumprimento de todas as obrigações pactuadas no âmbito de seu sistema
No âmbito do aluguel de ações, o papel da Câmara de Ações é de minimizar o risco de mercado que possa advir de um possível inadimplemento dos investidores finais (doador e tomador). Nesse ínterim, inteiramente razoável que se transfira a guarda das ações (ou de outro valor mobiliário que se pretenda dar em aluguel) à Câmara de Ações, que deterá a custódia das ações até que se concretize a operação. Isto é, a Câmara de Ações adquire a propriedade de modo limitado, atrelando-se à sua “aquisição” o dever de guarda das ações, bem como de sua administração e das cauções prestadas pelo tomador até que se dê o termo do aluguel, quando então a clearing depositária deverá restituir ao doador seu status quo ante, liberando a caução do tomador ou, em caso de inadimplência, levantando a caução em favor do doador a fim de ressarci-lo.
O liame entre as relações contratuais aqui mencionadas indica que se está diante de contratos coligados. Isto é, considerando-se que a propriedade fiduciária (ou guarda, em nossa posição) das ações se dá para fins de custódia e que a Câmara de Ações atua como elo entre doador e tomador, a existência de contratos distintos não possui o condão de dissolver a unidade da operação econômica. Tanto há essa pluralidade contratual que a CVM, em manifestação da área técnica no Processo CVM RJ nº 2006-7840121 (MEMO/CVM/SEP/GEA-4/Nº102/06), entendeu que o aluguel de ações por pessoas indicadas pelos controladores se mostrava uma versão aproximada do Proxy Machinery (pedido de procuração pública para obtenção do direito a voto, regulado pela Instrução CVM nº 481, de 17 de dezembro de 2009), chamando a atenção para o uso da operação aqui estudada com o fito de exercício abusivo do direito de voto.
É exatamente a possibilidade de abuso nos direitos acionários (seja a prerrogativa de voto, a de recesso ou outra ainda, vez que se delegou a regulamento o tratamento a ser conferido aos direitos inerentes aos valores mobiliários, nos termos do art. 4º, § 1º, II, da Res. CVM nº 34/2021) somada ao volume em que essa operação é negociada que torna relevante a reflexão sobre o tema.
E, para se conferir segurança jurídica quanto à uma operação, é imprescindível compreender sua qualificação.
Ocorre que a leitura dos elementos aqui já destacados implica compreender que, para atribuir à operação em comento uma qualificação jurídica determinada que se consubstanciasse num contrato típico, necessário seria que todos os elementos desse contrato a ela se ajustassem, assim como os quadros possuem determinadas molduras que acomodam suas dimensões. E, todavia, isso não ocorre no aluguel de valores mobiliários. Nele não são transferidos, ao menos até que vendidas as ações alugadas, o direito de perceber dividendos e juros sobre capital próprio, ainda que o doador os perceba a título de reembolso (art. 73 e ss. da Instrução RFB nº 1585/2015).
Dessa feita já se poderia colocar um novo problema: imagine-se que determinado lote de ações é alugado em 11.08.2016 pelo prazo de 360 dias e o aluguel não é reversível ao doador, mas ao tomador e isso tenha sido assim ajustado porque o doador, ao determinar citada ordem ao seu agente de custódia, acreditou que assim obteria remuneração maior. Imagine-se que o tomador alugou as ações, como é corriqueiro, para realização de short selling; portanto, tão logo a posição acionária é a ele transferida, ele a utiliza para cobrir uma posição vendida. Suponha-se que no centésimo dia de vigência da operação a companhia delibere distribuição de dividendos. A prevalecer a Instrução Normativa da Receita Federal, poder-se-ia haver quem defendesse que os dividendos seriam “reembolsados” ao doador e, portanto, “ceifados” daquele que – desinteressado da relação entre doador e tomador – adquiriu as ações deste.
Essa espécie de idiossincrasia leva a se entender que o aluguel de ações é um emaranhado de relações contratuais atípicas; motivo pelo qual, por exemplo, no Direito inglês, chegou-se à conclusão de que, na verdade, o que se tem é “uma absoluta transferência [9] do título (venda) contra um retorno em ações equivalentes” [8]. Para o Direito inglês, há um recall, que pode ser exercido, inclusive, caso se deseje exercer o direito de voto. Isto é, em regra, no direito britânico, assim como em nosso ordenamento, o direito de voto é do “tomador”.
O risco para o qual se chama a atenção é, novamente, para as hipóteses de abuso. Isto é, para as hipóteses em que o voto seja utilizado contra a companhia (negative voting), em razão de eventuais interesses econômicos do tomador. Isto é, o uso do aluguel de ações para incrementar o direito de voto com finalidades alheias à companhia e passíveis de suscitar conflitos societários de natureza variada não só existe, como a regulamentação legal da operação não fornece saída concreta para tal hipótese (aliás, a disciplina jurídica em questão nem sequer diz expressamente quem exerce o direito de voto, como se de obviedade se tratasse).
Uma regulamentação jurídica séria implica diminuição de custos de transação e aumento na atração de investimentos no Brasil. Diante do potencial risco de strike suits no Direito brasileiro que tomem por combustível o aluguel de ações (bem como de outros oportunismos afins), mais uma vez se chama a atenção para a necessidade da existência de um tratamento escorreito do direito de voto e do conflito de interesses, objetos, respectivamente, dos capítulos terceiro e quarto. Deixar prevalecer a lacuna é aceitar o risco da insegurança jurídica.
Autor: Bruno Marques Bensal
¹ Neves, Daniel Amorim Assumpção, Novo Código de Processo Civil, 3.ed.rev, atual. e ampl., – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, pág. 414