Aspectos gerais do patrimônio rural em afetação e suas implicações na recuperação judicial e falência 

Em linhas gerais, as garantias jurídicas vinculadas ao sistema de crédito brasileiro estabelecidas pelo Código Civil são divididas em garantias reais e pessoais. A garantia real é vinculada a um determinado bem, ao passo que a garantia pessoal é relacionada à pessoa do garantidor, sem suporte em um bem específico, mas que alcança o todo o patrimônio do garantidor. 

As garantias pessoais são a fiança e o aval; sendo que as garantias reais são divididas em penhor, hipoteca, anticrese e fidúcia para bens móveis. Ademais, com a necessidade de fomentar o financiamento imobiliário, a alienação fiduciária de coisa imóvel foi instituída pela Lei nº 9.514/1997. 

Ainda com a finalidade de fomentar o sistema de crédito e para trazer maior segurança jurídica ao mercado imobiliário, foi criado o patrimônio de afetação, instituído na legislação brasileira pela Medida Provisória nº 2.221, de 4 de setembro de 2001 (MP nº 2.221/2001), que posteriormente foi convertida na Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004 (Lei nº 10.931/2004), que dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias. 

Na mesma linha do patrimônio de afetação, em 2020 foi criado o patrimônio rural em afetação, sendo uma inovação legislativa decorrente da Medida Provisória nº 897, de 1º de outubro de 2020, convertida na Lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020 (Lei nº 13.986/2020), conhecida popularmente como “Lei do Agro”. 

O referido instituto foi criado não só para fomentar a concessão de crédito no mercado do agronegócio, mas também para trazer segurança aos financiadores da cadeia produtiva do agronegócio e para reduzir os custos financeiros, diminuindo os riscos da atividade e a possível inadimplência no setor. 

Assim, considerando esta inovação legislativa, abordaremos suas características e suas implicações na recuperação judicial e falência, a fim de demonstrar os aspectos relevantes decorrentes deste novo instituto. 

Do patrimônio rural em afetação 

No Direito Civil brasileiro, o patrimônio de afetação foi instituído expressamente com a Lei nº 10.931/2004 e sua aplicação foi focada na atividade imobiliária. Na referida lei, por meio da incorporação imobiliária, restou permitida a instituição do patrimônio de afetação, onde o terreno, as acessões e os demais bens e direitos vinculados ao empreendimento formam um núcleo patrimonial separado, que não se mistura com os demais bens integrantes do patrimônio do incorporador. 

O patrimônio de afetação permite a segregação patrimonial ou a imposição de determinada obrigação vinculada a bem imóvel para obtenção de uma finalidade específica, ou seja, a autonomia conferida ao patrimônio de afetação permite que ele cumpra a função que lhe fora atribuída. 

Desse modo, a afetação permite a existência de um conjunto patrimonial sob a titularidade de um único sujeito, constituído para o fim de viabilizar a exploração econômica de determinado bem, sendo importante destacar as palavras de Melhim Namem Challub: 

Efetivamente, a teoria da afetação admite a segregação patrimonial segundo certos encargos que se impõem a determinados bens, que passariam a ter destinação específica. Em outras palavras: determinados bens seriam destinados a finalidade especial e, para alcançá-la, seriam dotados da autonomia necessária à realização desse fim; não se trata de segregação pura e simples, sendo necessário definir uma destinação para os bens ou direitos segregados; é necessário, enfim, que os bens afetados cumpram determinada função. Segundo essa teoria, é possível a existência de massas patrimoniais distintas, constituídas com a precípua finalidade de se alcançar determinados fins jurídicos ou econômicos.1 

Superado o conceito de patrimônio de afetação, tem-se que a Medida Provisória nº 897, de 1º de outubro de 2020, convertida na Lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020 (Lei nº 13.986/2020 – Lei do Agro), instituiu o patrimônio de afetação de imóvel rural ou, nos termos que constam na Lei do Agro, “patrimônio rural em afetação”. 

O patrimônio rural em afetação permite ao proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, que submeta seu imóvel ou uma fração dele ao regime de afetação para garantir empréstimos e financiamentos agrícolas, incluindo o terreno, acessões e benfeitorias nele fixadas, mas excluindo a lavoura, os bens móveis e os semoventes. 

O legislador trouxe essa inovação para simplificar e ampliar o acesso aos recursos financeiros pelos proprietários de imóveis rurais, possibilitando que forneçam garantias de parte de seus bens no limite dos valores negociados por empréstimo e financiamentos rurais, em contrapartida das garantias tradicionalmente oferecidas, tais como a alienação fiduciária de imóvel e a hipoteca, por exemplo. 

Assim, o patrimônio rural em afetação permite que sejam prestadas garantias por meio de emissão de Cédula de Produto Rural (CPR) ou por meio de Cédula Imobiliária Rural (CIR).  

Com relação às garantias mencionadas (CIR ou CPR), tem-se que foram criadas em benefício do proprietário do imóvel, a fim de facilitar a obtenção de crédito no mercado e em benefício do credor, para assegurar a efetividade da operação; ao passo que enquanto a dívida não for adimplida, o imóvel rural não poderá ser vendido, doado ou sofrer qualquer ato translativo de propriedade, ainda que apenas parte da propriedade rural seja submetida ao regime de afetação. 

A CIR é um título líquido, certo e exigível que representa a promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito de qualquer modalidade, podendo ou não ser garantida por terceiros (instituição financeira ou seguradora), sendo que há possibilidade de que seja emitida exclusivamente pelo proprietário de imóvel rural que constituiu patrimônio rural em afetação.  

Ademais, tem-se que a CIR representa a obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural, ou fração deste, vinculado ao patrimônio rural em afetação e que seja garantia da operação nas hipóteses em que não houver o adimplemento da operação até o vencimento da dívida. 

A CPR, por sua vez, instituída pela Lei nº 8.929/1994, é também um título de crédito, líquido, certo e exigível, mas representa a promessa de entrega de produtos rurais e não de pagamento em dinheiro. 

Diante disso, a principal diferença entre elas é que a CIR representa promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito de qualquer modalidade, apresentando um preço. Já a CPR possui discriminação de quantidade e qualidade de um produto rural que deverá ser entregue dentro do prazo estipulado entre as partes. 

Nesse contexto, para atribuir segurança jurídica às operações relacionadas ao patrimônio rural em afetação, o texto legal trouxe algumas vedações para aplicação do instituto às propriedades rurais impenhoráveis. 

Com relação às vedações, em seu artigo 8º a Lei do Agro vetou a constituição de patrimônio rural em afetação incidente sobre:  

(i) o imóvel já gravado por hipoteca, por alienação fiduciária de coisa imóvel ou que tenha qualquer outra obrigação que possa limitar o usufruto e disposição da propriedade, o imóvel que tenha registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias, averbação por solicitação do interessado de ação de execução ou em fase de cumprimento de sentença, averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados e averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência;  

(ii) a pequena propriedade rural de até 4 (quatro) módulos fiscais2;  

(iii) a área de tamanho inferior ao módulo ou à fração mínima de parcelamento, nos termos previstos no artigo 8º da Lei nº. 5.868, de 12 de dezembro de 1972 que cria o Sistema Nacional de Cadastro Rural (“SNCR”)3; e 

(iv) o bem de família estabelecido pelo Código Civil, exceto nos casos em que a residência familiar se constituir em imóvel rural, hipótese em que a impenhorabilidade se restringirá à sede da moradia. 

Ainda no que se refere às vedações, cumpre destacar que os bens e direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação constituídos, desde que estejam vinculados a Cédula Imobiliária Rural (CIR) ou a Cédula de Produto Rural (CPR), ou na medida das garantias expressas nos referidos títulos de crédito. 

Desta forma, para estabelecimento das garantias mencionadas, se faz necessário a observância ao que dispõe os incisos VIII e IX do artigo 22 da Lei do Agro, com a menção expressa no corpo da CIR ou CPR das seguintes informações:  

(i) a identificação do patrimônio rural em afetação, ou de sua parte, correspondente à garantia oferecida na CIR ou CPR, ao passo que deverá conter, nos termos o § 1º do artigo 22 da Lei do Agro, o número de registro e da matrícula do imóvel no cartório de registro de imóveis competente e as coordenadas dos vértices definidores dos limites da área vinculada à CIR, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro; e  

(ii) a autorização irretratável para que o oficial de registro de imóveis processe, em favor do credor, o registro de transmissão da propriedade do imóvel rural, ou da fração, constituinte do patrimônio rural em afetação vinculado à CIR, de acordo com o disposto no artigo 28 desta Lei. 

Uma vez efetivado o registro do patrimônio rural em afetação, é gerado um número de identificação que deverá constar na matrícula do imóvel afetado com todas as informações pertinentes sobre a garantia. O registro busca evitar que ocorra qualquer ato translativo da propriedade submetida ao regime do patrimônio rural em afetação. 

Da liquidação do patrimônio rural em afetação 

Na hipótese de vencimento da CIR ou da CPR e não liquidado o crédito disposto nos títulos, o credor poderá imediatamente exercer o direito à transferência do patrimônio rural em afetação para sua titularidade, observando os termos previstos pelos artigos 16, 22, inciso IX, e 28 da Lei do Agro4, e aplicando as regras previstas na Lei nº 9.514/1997, que dispõe sobre Sistema de Financiamento Imobiliário e que instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel na legislação brasileira. 

Ocorre que há uma contradição nos artigos da Lei do Agro que tratam da transferência imediata do imóvel e da utilização dos procedimentos da Lei nº 9.514/1997 (Lei da Alienação Fiduciária) para consolidação da propriedade, pois o art. 22, inciso IX, e o caput do art. 28, ambos da Lei do Agro, permitem a transferência imediata da propriedade que constitui o patrimônio rural em afetação, independentemente de qualquer procedimento. Todavia, o § 2º do art. 28 da Lei do Agro determina que a transferência da propriedade ao credor se sujeita às regras dos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997. 

Com relação ao disposto nos artigos 16 e 22, inciso IX, ambos da Lei do Agro, a transferência da propriedade do patrimônio de afetação diretamente pelo credor é vedada pelo art. 1.428 do Código Civil (CC)5. A vedação mencionada decorre da caracterização da hipótese do pacto comissório, pois tal previsão contratual estipula obrigações ao devedor e condiciona a perda dos direitos contratuais em caso de inadimplemento, sendo nula qualquer cláusula que autorize o credor a ficar diretamente com o bem em caso de inadimplemento. 

Considerando a possibilidade de caracterização do pacto comissório, o que acarretaria a nulidade de cláusulas estabelecidas na CIR e CPR nos termos dos artigos 16 e 22 da Lei do Agro, uma vez caracterizada a mora do devedor, é recomendável que sejam adotados os procedimentos previstos nos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997. 

Assim, com a caracterização da mora, o credor deverá comunicar ao Cartório de Registro de Imóveis o inadimplemento. Após, o oficial deverá providenciar a intimação do devedor para, no prazo de 15 (quinze) dias, satisfazer a obrigação vencida. Caso a obrigação seja novamente inadimplida, o oficial deverá certificar o fato e promover o registro na matrícula do imóvel consolidando a propriedade. 

Uma vez consolidada a propriedade do patrimônio afetado em nome do credor, ele deverá em 30 (trinta) dias promover o primeiro leilão público para alienação do imóvel e, caso não seja arrematado, deverá realizar o segundo leilão nos próximos 15 (quinze) dias após a realização do primeiro leilão, momento em que será aceito o maior lance oferecido, desde que o valor seja igual ou superior ao valor da dívida. 

Acaso o maior lance oferecido no segundo leilão não seja igual ou superior ao valor da dívida (valor devido com acréscimos das despesas, tributos e encargos legais), o credor poderá cobrar do devedor, por meio de Ação de Execução por Quantia Certa, o valor remanescente de seu crédito, sem direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado. 

Com relação à possibilidade de execução judicial do valor remanescente, prevista no § 3º do art. 28 da Lei do Agro, destaca-se que ela contraria o disposto nos §§ 2º e 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997, pois estes preveem que é vedado ao credor fiduciário aceitar lance inferior ao valor da dívida. Assim, caso o lance seja inferior ao valor da dívida, a propriedade fiduciária será consolidada, sendo que o imóvel permanecerá no patrimônio do credor funcionário pelo valor do saldo devedor, considerando extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de entregar ao devedor a importância que sobejar o valor da dívida. 

Posto isso, resta evidente que referida contradição impede que o credor da CIR ou CPR execute o valor remanescente de seu crédito, considerando a previsão expressa disposta nos §§ 2º e 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997. 

Dessa maneira, apesar da intenção do legislador de trazer maior agilidade na transferência da propriedade, pode-se afirmar que o legislador trouxe à CPR e à CIR vinculadas ao patrimônio rural em afetação os mesmos critérios de liquidação da consolidação do imóvel alienado fiduciariamente, ao passo que medidas como a transferência direta da propriedade e de execução judicial de eventual saldo remanescente decorrente do inadimplemento de CPR e CIR não se mostram possíveis em razão das contradições apontadas. 

Do regime do patrimônio rural em afetação na Recuperação Judicial e/ou Falência 

A Lei do Agro, no § 4º do artigo 106, afastou o patrimônio rural em afetação vinculado à CIR ou à CPR da Recuperação Judicial e Falência, pois nos últimos anos os pedidos de recuperação judicial relacionados aos produtores rurais cresceram exponencialmente, gerando uma onda de insegurança para a cadeia que financia e fomenta o agronegócio. 

Com o dispositivo legal supramencionado, restou estabelecido que o patrimônio rural em afetação ou a fração, vinculados à CIR ou à CPR, incluídos o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no terreno, exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes, não são atingidos pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural. 

Outra alteração relevante também estabelecida no artigo 10 da Lei do Agro estabelece que o patrimônio rural em afetação vinculado à CIR ou à CPR também não integrará a massa concursal na hipótese de falência. 

Desta forma, tem-se que o afastamento ocorreu na tentativa de reduzir o risco das operações de crédito na cadeia de produção rural, o que obrigou os credores que financiam a cadeia produtiva a adotarem novos parâmetros para a concessão de crédito, tais como o aumento das taxas de juros, a exigência de garantias para concessão etc. 

Ademais, analisando as inovações trazidas na Lei do Agro e suas implicações, cumpre mencionar que houve uma alteração legislativa significativa, através da Lei nº 14.112/2020, que alterou o artigo 11 da Lei nº 8.929/1994 (Lei da CPR)7, a fim de dispor expressamente sobre as garantias relacionadas à CPR. Na referida alteração, foi incluído no artigo 11 da Lei da CPR a menção expressa de que não estarão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, o que reforça o caráter extraconcursal estabelecido ao referido título de crédito. 

Outra importante exceção trazida pelo § 5º do artigo 10 da Lei nº. 13.986/2020 (Lei do Agro), admite o afastamento do patrimônio rural em afetação no que se refere às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural, em consonância com a sistemática do Código Tributário Nacional (CTN), que determina a preferência do crédito tributário sobre qualquer outro, exceto os trabalhistas, que possuem natureza alimentar e detêm privilégio especialíssimo. 

Diante disso, considerando que as alterações são recentes e que os tribunais brasileiros ainda não tiveram a oportunidade de debater as questões mencionadas, é relevante o acompanhamento do tema para verificar quais serão suas implicações e efetiva aplicação da referida Lei no âmbito dos pedidos de recuperação judicial e falência.  

Considerações finais 

A inovação legislativa que criou o patrimônio rural em afetação possui o objetivo de trazer segurança jurídica para as operações de crédito vinculadas às garantias constantes em uma CPR ou CIR, a fim de facilitar o financiamento dos proprietários de imóveis rurais, ante os diversos pedidos de recuperação judicial surgidos nos últimos tempos. 

Além disso, o objetivo do patrimônio rural em afetação é reduzir o custo da operação para os produtores, proporcionando redução nas taxas de juros do crédito fornecido e aumentando a disponibilidade de garantias para concessão de crédito. 

Posto isso, considerando que a CPR e a CIR são muito utilizados no financiamento rural e que são títulos líquidos, certos e exigíveis, com a possibilidade de inclusão de garantia pelo patrimônio rural em afetação, resta evidente a segurança jurídica trazida pelo instituto, haja vista que essa garantia possibilita que o credor possa cobrar tais créditos extrajudicialmente ou através do ajuizamento de ação de execução, mesmo com as contradições presentes na Lei e apontadas acima. 

Portanto, com as exceções trazidas pela Lei do Agro, há possibilidade de que os créditos sejam cobrados em paralelo aos pedidos de recuperação judicial e falência, independente das decisões proferidas pelo Juízo universal, bem como independente dos efeitos que a recuperação judicial e falência possuem sobre os créditos listados e discutidos nestas ações, cabendo ao Poder Judiciário aplicar o novo instituto nos termos determinados na lei.

Autor: Franciano Sabadim Assis

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