A demonstração de relevância das questões de direito federal infraconstitucional como requisito de admissibilidade do RESP

O recurso especial é uma espécie de recurso interposto perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme o artigo 105, inciso III, da Constituição, contra acórdãos proferidos por tribunais estaduais ou regionais federais que contrariem ou neguem vigência a normas federais ou tratados, que julguem válido ato de governo local contestado em face de lei federal, ou ainda que der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. 

Dessa forma, pela leitura do artigo 105, inciso III, já se abstrai a razão central da existência do recurso especial, que não foi criado para resolver injustiças, pois o STJ não figura em nosso ordenamento com a função de um “terceiro grau de jurisdição”, mas sim um recurso que visa a uniformidade de aplicação da legislação em todo território brasileiro.  

A Ministra Eliana Calmon, no julgamento do RESP 70.424/SP1, discorreu sobre o assunto dizendo que: “O recurso especial não tem por finalidade corrigir injustiças, senão por via de consequência. Este é um Tribunal de precedentes, que tem por finalidade constitucional firmar entendimento quanto à interpretação do Direito Infraconstitucional”. 

O STJ, portanto, exerce um papel fundamental na uniformização da interpretação da legislação federal em todo o país, garantindo segurança jurídica e efetividade no ordenamento jurídico brasileiro, pois sua jurisprudência serve como referência para os demais tribunais e contribui para a construção de um sistema jurídico coeso, concatenado e estável. 

Nas palavras de Arruda Alvim2, ao STJ:“coube matéria vital, qual seja a de ser o guardião da inteireza do sistema jurídico federal não constitucional, assegurando-lhe validade e bem assim uniformidade na interpretação. A função do recurso especial é uma exigência síntese do Estado federal em que vivemos” 

Assim, para que o recurso especial seja admitido e julgado pelo STJ, é necessário cumprir uma série de requisitos estabelecidos na legislação processual civil, sejam os requisitos genéricos de admissibilidade como a cabimento, legitimidade, interesse recursal, tempestividade, regularidade formal, inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer e preparo, bem como os requisitos específicos como a necessidade de serem esgotadas as instâncias ordinárias e o prequestionamento. 

A exigência desses requisitos tem o propósito de selecionar os casos mais relevantes e evitar o acúmulo de processos sem fundamentos jurídicos adequados, reafirmando a essência da corte, que é trazer uniformidade para o entendimento da lei federal. 

Atualmente, por força da Emenda Constitucional nº 125/2022 que alterou o artigo 105 da Constituição, foi incluída a demonstração da relevância da questão federal como requisito específico para a admissão do recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça, sendo que essa exigência, mais uma vez, decorre do fato de que o STJ tem como principal função a uniformização da interpretação da legislação federal em todo o país.  

Ademais, este requisito possui a mesma lógica que deu ensejo à criação de outros mecanismos que objetivamente tem como propósito a diminuição do número de recursos que são admitidos na corte todos os anos, afunilando a entrada de recursos especiais para julgamento, dado o volume de recursos que vem se multiplicando na corte ano a ano.

O volume de recursos julgados pelo STJ

A demonstração da relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do recurso especial, além da tentativa de buscar a uniformização da interpretação das normas federais em todo o país como objetivo central, também se deu em razão da grande quantidade de recursos que são admitidos no STJ e da necessidade de garantir a efetividade da jurisdição da corte. 

Conforme informação extraída do site oficial do STJ3, o número de recursos que ascendem à corte é muito alto, sendo que o STJ atingiu em 2022 a marca de 2.000.000 (dois milhões) de recursos especiais desde a sua criação, em abril de 1989.  

Destaca-se ainda o fato de que em 2007 havia chegado à marca de 1.000.000 (um milhão), ou seja, os dois milhões atingidos no ano de 2022 foram alcançados em um intervalo três anos menor, conforme fica demonstrado no gráfico abaixo, também extraído do site oficial do STJ: 

Fonte: STJ 

A importância do recurso especial – como o mais relevante recurso de competência do STJ – implica em uma atenção redobrada na sua análise, sendo que, ante o grande volume de litígios que são levados aos tribunais brasileiros, o poder judiciário como instituição única vem buscando maneiras de provocar uma redução drástica nessa cultura litigante existente no Brasil.  

Há hoje várias iniciativas fomentando meios alternativos de solução de demandas como o incentivo à mediação, à conciliação e à arbitragem, com o mote de proteção das funções institucionais de cada um de seus órgãos, entre outros mecanismos que foram sendo criados para conter essa escalada nos números de recursos admitidos, como por exemplo a súmula 7, o prequestionamento, o recurso repetitivo, o Incidente de Assunção de Competência (IAC) e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). 

Mecanismos usados para conter admissão de recursos no STJ

O filtro da súmula 7 do STJ

Nessa mesma linha, entende-se que a edição da Súmula 7 do STJ, que exige que a discussão no recurso especial esteja restrita apenas a questões de direito, não sendo admitidos recursos especiais que pretendam o reexame de fatos ou provas, foi criada para resguardar o papel do STJ como corte de precedentes.  

A Súmula 7 do STJ é uma orientação jurisprudencial consolidada pelo tribunal que trata da limitação do reexame de fatos e provas em recurso especial, estabelecendo uma regra específica para a apreciação desse tipo de recurso, restringindo a possibilidade de reavaliação do conjunto fático-probatório apresentado nas instâncias anteriores, quais sejam a primeira instância e o tribunal de origem. 

A Súmula 7 do STJ dispõe o seguinte teor:  

“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.  

Isso, portanto, significa que o STJ não é competente para analisar novamente as provas produzidas no processo e reavaliar os fatos já estabelecidos pelas instâncias inferiores. Em outras palavras, o tribunal não pode realizar um novo julgamento de mérito, pois sua função é a de interpretar e aplicar as leis infraconstitucionais. 

Ademais, a súmula estabelece que as instâncias ordinárias são as mais aptas para avaliar a prova e decidir sobre o contexto fático do caso e, portanto, o STJ não pode se sobrepor às conclusões dos juízes e tribunais de origem, salvo em casos excepcionais em que haja flagrante erro ou violação de norma federal. 

A Súmula 7 visa, assim, evitar a reabertura indiscriminada de questões fáticas e a reavaliação das provas produzidas nas instâncias anteriores, conferindo maior segurança jurídica e estabilidade às decisões judiciais, pois uma vez que os fatos e as provas tenham sido analisados e valorados pelas instâncias ordinárias, em princípio, não cabe ao STJ revisitar essa apreciação. 

No entanto, existem algumas exceções à aplicação da Súmula 7, como por exemplo, o STJ pode afastar a restrição do reexame de provas quando a decisão recorrida estiver baseada em prova documental insuficiente ou se as conclusões das instâncias inferiores forem manifestamente contrárias às provas dos autos, sendo que em tais situações, o tribunal pode revisar a decisão e afastar a aplicação da súmula para corrigir eventuais injustiças ou erros evidentes. 

Portanto, a Súmula 7 do STJ é um mecanismo que foi criado na lógica de diminuir o número de recursos admitidos, com o estabelecimento da limitação ao reexame de fatos e provas em recurso especial, impedindo que o tribunal superior reavalie o conjunto probatório analisado nas instâncias inferiores, sendo que essa restrição busca preservar a competência das instâncias ordinárias para a análise das questões fáticas e garantir a segurança jurídica das decisões.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como instrumento de contenção do volume recursal 

Outro instrumento jurídico que também segue essa mesma lógica de diminuição de admissões de recurso especial no STJ, é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), trazido pelo atual Código de Processo Civil (CPC), que tem como objetivo a uniformização de entendimento a ser replicado em processos que discutem a mesma questão de direito, algo que já similar à sistemática dos recursos repetitivos, porém mais abrangente.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) é um instituto processual que tem como objetivo resolver de forma coletiva e uniforme questões jurídicas idênticas que estejam sendo discutidas em diversos processos individuais, evitando decisões conflitantes e garantindo a segurança jurídica. 

O IRDR foi criado como uma resposta à necessidade de lidar com a multiplicidade de demandas repetitivas que, conforme anteriormente demonstrado, sobrecarrega o Poder Judiciário brasileiro.  

Com o IRDR, é possível concentrar essas demandas repetitivas em um único processo, onde será julgada a questão jurídica comum a todas elas e dessa forma, evita-se a repetição de análises e decisões sobre o mesmo tema em diversos processos individuais, economizando tempo, recursos e esforços tanto para os jurisdicionados como para o próprio Poder Judiciário. 

O IRDR é instaurado a partir de um incidente processual perante o tribunal competente, sendo que esse incidente pode ser suscitado pelas partes envolvidas nos processos individuais, Ministério Público, Defensoria ou pelo próprio tribunal, de ofício, quando identifica a existência de controvérsia jurídica repetitiva, sendo necessário que haja quantidade considerável de processos em andamento que versem sobre a mesma questão jurídica para a instauração do IRDR. 

Uma vez instaurado o incidente, o tribunal seleciona um ou mais processos representativos para serem julgados como paradigmas, ou seja, como referência para a resolução da controvérsia, deixando os demais processos sobrestados até o julgamento do IRDR, a fim de aguardar a definição da questão jurídica em discussão. 

O tribunal designa um relator para o IRDR, que será responsável por instruir o incidente, coletando informações e documentos necessários, ouvindo as partes interessadas, solicitando pareceres de órgãos e entidades especializadas, se for o caso, e elaborando um relatório com as conclusões sobre a matéria. 

Após a instrução, o relator submete o incidente ao julgamento do tribunal, que decidirá de forma colegiada sobre a questão jurídica em discussão.  

A decisão proferida pelo tribunal terá efeito vinculante, ou seja, deverá ser seguida por todos os juízes e tribunais inferiores que estiverem julgando casos idênticos. 

O IRDR, portanto, é uma importante ferramenta do sistema processual brasileiro para otimizar e conter a exacerbada litigância observada nos tribunais, garantindo a uniformidade e a segurança jurídica na resolução de demandas repetitivas, evitando a dispersão de decisões conflitantes, promovendo a eficiência e a celeridade processual, além de contribuir para a pacificação social ao estabelecer uma interpretação única e estável para a questão jurídica em debate.

O filtro do prequestionamento

Outro filtro criado para a admissibilidade do recurso especial que restringe a subida de recursos ao STJ é o requisito do prequestionamento – fundamental para a admissão do recurso especial – e não se confunde com a exigência da demonstração da relevância da questão federal. 

O prequestionamento consiste na necessidade de que a matéria objeto do recurso tenha sido debatida e decidida pelo tribunal de origem, de forma expressa e fundamentada, para que possa ser apreciada pelo STJ.  

O prequestionamento tem como objetivo permitir ao STJ analisar e julgar questões de direito federal que tenham sido adequadamente debatidas e fundamentadas pelas partes no tribunal de origem e dessa forma, busca-se evitar que o STJ se torne uma terceira instância de julgamento, revisando fatos e provas, e concentrando-se apenas em questões de direito. 

Entendendo o STJ como corte de precedentes que visa uniformizar a interpretação das leis federais no país, o prequestionamento é uma exigência que visa assegurar a correta aplicação das normas federais, impedindo que as partes levem ao STJ questões que não tenham sido previamente analisadas e decididas pelo tribunal de origem, afastando a possibilidade de o STJ se tornar uma instância revisora de todos os aspectos da causa. 

Para cumprir o requisito do prequestionamento, a parte interessada deve suscitar a questão de direito durante o processo no tribunal de origem, seja por meio de petições, alegações, manifestações ou recursos, sendo necessário que a matéria seja debatida e fundamentada de forma expressa. 

Cabe ressaltar que o prequestionamento não exige que o tribunal de origem tenha adotado a mesma interpretação que a parte recorrente considera correta, pois o que importa é que a questão tenha sido enfrentada pelo tribunal de origem, com fundamentação adequada, independentemente do entendimento adotado. 

Além disso, o prequestionamento não se restringe à matéria de direito estritamente federal, pois ele também abrange questões que possam ter reflexos em normas federais, ainda que o debate principal seja baseado em legislação estadual ou até mesmo em princípios gerais do direito. 

Portanto, o prequestionamento é um requisito essencial para a admissibilidade do Recurso Especial perante o STJ, visando garantir que as questões de direito federal tenham sido adequadamente discutidas e decididas pelo tribunal de origem, evitando a revisão de fatos e provas, para que o STJ se concentre em questões de direito, uniformizando a interpretação das normas federais e garantindo a segurança jurídica em todo o país.

O filtro da relevância da questão federal e suas nuances

A demonstração da relevância da questão federal, portanto, foi inserida como um novo requisito de admissão do recurso especial, permitindo ao STJ avaliar se o caso em questão envolve uma matéria de relevância nacional, que justifique a intervenção da corte superior, funcionando como uma “repercussão geral”, em analogia ao requisito de admissibilidade do recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF). 

Interessante pontuar também que, em análise ao §2º do artigo 105, da Constituição, incluído pela EC nº 125/2022, o recurso especial somente poderá ser inadmitido em razão da ausência de demonstração da relevância de questão de direito federal, havendo manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o julgamento, ou seja, não haverá possibilidade de interposição de recurso contra a decisão do órgão que decidir a questão de admissibilidade deste requisito. 

Já do §3º do artigo 105, da Constituição, também trazido pela EC nº 125/2022, infere-se que a relevância da questão federal existirá quando se tratar de ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários-mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade, hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, e outras hipóteses previstas em lei. 

O inciso VI do §3º do artigo 105, da Constituição, ao constar “outras hipóteses previstas em lei”, em primeiro momento, sugere se tratar de uma norma constitucional de eficácia limitada, condicionando os efeitos à edição de uma lei ordinária regulamentadora. Porém, como consta no artigo 2º da EC nº 125/2022, o legislador é expresso ao dizer que a relevância seria exigida após a entrada em vigor da própria emenda, promulgada em 15/07/2022, tratando-se, portanto, de uma norma constitucional de eficácia plena. 

Em que pese se tratar de uma norma constitucional de eficácia plena, não há dúvidas de que é necessária uma regulamentação acerca desse novo requisito trazido pela EC nº 125/2022, sendo que nesse ínterim, a definição ficaria a cargo da doutrina e jurisprudência. 

A expectativa é de que a regulamentação será similar ao que ocorreu quando houve a inserção do requisito de “repercussão geral”, quando da EC nº 45/2004, que foi regulamentada e hoje consta no artigo 1.035 do Código de Processo Civil (CPC).  

Seria, portanto, necessário demonstrar que a questão infraconstitucional tratada no recurso especial possui relevância sob o prisma econômico, político, jurídico e/ou social e que ultrapassaria o mero interesse subjetivo contido na causa. 

Recentemente, o STJ se manifestou a respeito do critério de relevância da questão federal para admissão do recurso especial. O enunciado administrativo do STJ nº 8/2022 definiu que o critério de relevância do recurso especial só será exigido após a vigência da futura lei regulamentadora, como consta no inciso VI do §3º do artigo 105, da Constituição, em “outras hipóteses previstas em lei”. 

A decisão do STJ de adiar a exigência da demonstração da relevância da questão federal para a admissão do recurso especial até a vigência da futura lei regulamentadora é uma medida que visa a trazer maior segurança jurídica e previsibilidade aos jurisdicionados.  

Afinal, a demonstração da relevância da questão federal não pode ser um requisito subjetivo, devendo ser estabelecido de forma clara e objetiva para que quem necessite interpor recurso especial na corte, o faça com segurança de que seu pleito será devidamente analisado.

Conclusão

Portanto, em razão da grande quantidade de processos que chegam ao STJ e da necessidade de garantir a efetividade da justiça e a uniformização da interpretação das normas federais em todo o país, foi criado mais um filtro de admissibilidade para o recurso especial no STJ, que é a demonstração da relevância da questão federal. 

Tal requisito de admissibilidade ainda pende de regularização conforme enunciado administrativo do STJ nº 8/2022, mas de qualquer maneira, entende-se que sua demonstração será análoga ao filtro da “repercussão geral”, que já é corriqueiro nos recursos extraordinários. 

Autor: Marcus Vinicius Silva Paulino da Costa

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