A responsabilidade civil relativa ao transporte rodoviário de cargas e o enunciado 15 do Tribunal de Justiça de São Paulo 

Introdução 

Sabe-se que o transporte terrestre de cargas detém no Brasil relevância destacada na medida em que encerra a maior porção de trânsito e distribuição de mercadorias no país. Por conta disso sua logística, cada vez mais inerente à atividade do transporte, também se mostra de elevado relevo, na medida em que sua presença pode refletir ou não no sucesso da atividade e na satisfação do destinatário final.  

No entanto, trata-se de negócio sob forte influência de fatores externos, tais como as condições climáticas e eventual volatilidade do preço das commodities. Além disso, o segmento conta com risco relevante que lhe é atribuído por força de disposição expressa de lei, qual seja a responsabilidade civil incidente na espécie. 

Parte I 

As disposições do Código Civil que tratam da atividade, inseridas nos artigos 743 a 756, mantêm de forma implícita um dever de incolumidade, de modo que se estabeleceu a responsabilidade objetiva do transportador. Desta forma, quando este, no desenvolvimento de sua atividade, causar prejuízos ou danos a terceiros, bastará que se demonstre o nexo de causalidade para a responsabilização pelo dano causado, não se exigindo, nesta hipótese, que se demonstre dolo ou culpa.  

Para além da questão jurídica, a responsabilidade objetiva do transportador estabelece relevante risco financeiro, já que o roubo de carga é uma realidade diuturnamente enfrentada pelas empresas do setor.  

Neste sentido, o seguro de carga ocupa elevada importância, já que permite, em uma ocasião em que, por exemplo, se dê o roubo de mercadoria de terceiro, este seja indenizado em decorrência do fato. 

Em relação à responsabilidade da transportadora em hipótese de roubo, a jurisprudência há anos oscila entre o entendimento de que o caso fortuito deve redundar na exclusão da responsabilidade do transportador e a hipótese de que o risco é inerente à atividade e deve ser absorvido por ele.   

A aplicação da tese da fortuidade ganha espaço na medida em que o artigo 734 do Código Civil prevê que o transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade. 

Para ilustrar a questão, destaca-se o informativo de jurisprudência 744 do STJ que abordou o EREsp 1.577.162-SP, de Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, da Segunda Seção, julgado por maioria em 10/08/2022. Do mencionado informativo, colhe-se que: 

O dissenso submetido à análise da Segunda Seção do STJ diz respeito ao direito de indenização da seguradora sub-rogada nos direitos e ações da proprietária da carga no caso de fortuito externo (roubo de carga com o emprego de arma de fogo), na hipótese de o risco ser agravado pela transportadora. 

O art. 393 do CC/2002 afasta a responsabilidade do devedor pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não houver por eles se responsabilizado. No seu parágrafo único, define caso fortuito ou força maior como o fato necessário, ou seja, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir. 

O art. 768 do diploma civil, por sua vez, culmina a perda do direito à garantia do segurado se ele agravar intencionalmente o risco objeto do contrato, obrigando este a se abster de todo e qualquer ato que acarrete o agravamento dos riscos pactuados pelas partes. 

O roubo, mediante uso de arma de fogo, é fato de terceiro equiparável a força maior, que exclui o dever de indenizar, ainda que haja responsabilidade civil objetiva na situação em concreto. Trata-se de fato inevitável, porém, previsível no transporte de cargas, tanto que há obrigatoriedade na realização de seguro (art. 13 da Lei n. 11.442/2007). 

O informativo 744 ainda destaca que o posicionamento do Tribunal da Cidadania buscou solução razoável para equacionar o problema da criminalidade do roubo de cargas, evitando que empresa proprietária da mercadoria suportasse todo o ônus da perda da carga, tampouco impusesse tal ônus a transportadora, que não presta serviço de segurança à carga, mas de transporte, nem a seguradora, que é contratada por imposição legal, em razão do agravamento desenfreado do risco pelos envolvidos. 

É neste sentido que o seguro adotado na espécie detém a sua imprescindibilidade, já que, para além de importar em providência que se mostra oportuna, tem sua contratação imposta pelo ordenamento jurídico.  

Parte II 

Diante da regularidade deste tipo de contratação securitária, passou a convencionar-se, por praxe, a chamada cláusula de dispensa de direito de regresso, conhecida como DDR.  

Na hipótese de inexistência da referida cláusula inserida na relação de contratação do seguro, o direito de regresso seria naturalmente passível de veiculação pela seguradora que, arcando com o dano causado pelo transportador mediante a competente indenização securitária, venha se valer da pretensão de se ver ressarcida pelo transportador em relação ao montante despendido. 

Isto porque, a partir do momento que a indenização securitária decorrente de um sinistro é paga ao segurado, a seguradora obtém o direito de buscar o ressarcimento contra o causador do dano e do prejuízo. Trata-se de disposição legal que garante, inicialmente, o direito à companhia.  

A viabilidade da pretensão de ressarcimento da transportadora, mesmo em casos de roubo de carga, vem, portanto, se potencializando. Tal ocorrência é possível de ser observada, nos processos em que a companhia seguradora faz prova no sentido de que o transportador teria contribuído para a ocorrência, por exemplo, agravando o risco, pelo que a tendência dos tribunais, nestes casos, é de reconhecer a ausência de fortuidade e a responsabilidade do transportador.  

Demandas regressivas promovidas pelas seguradoras em casos de roubo ou sinistros de outras naturezas são numerosas no Poder Judiciário e na última década desembocaram no debate acerca da cláusula DDR.  

A renúncia pela companhia seguradora ao direito de regresso por meio da mencionada cláusula não é incomum e a lógica utilizada para que seja descartada a fortuidade no caso concreto passou a ser adotada também para a análise da aplicabilidade ou não da cláusula DDR. 

Neste sentido, o entendimento foi materializado pelo enunciado 15 do Tribunal de Justiça de São Paulo, aprovado em outubro de 2022: 

Enunciado 15: “No roubo de carga objeto de contrato de transporte terrestre, é cabível o direito de regresso, se assim o autorizam as circunstâncias fáticas, ainda que exista cláusula de renúncia pela seguradora nas hipóteses em que houve agravamento do risco ou culpa do transportador.”  

A análise das circunstâncias fáticas, portanto, passou a ser demandada para que se conclua ou não pela aplicação de uma renúncia a direito devidamente chancelada pela seguradora.  

A leitura que deve ser feito, portanto, é de que é possível a companhia seguradora a busca da reparação ou ressarcimento em regresso em face do transportador que não teria observado na hipótese as cautelas exigíveis.  

Vale mencionar que o enunciado não exemplifica quais cautelas seriam exigíveis, se seriam aquelas regularmente previstas no comumente utilizado Plano de Gerenciamento de Risco ou outras a serem analisadas na casuística.  

Dentre os precedentes citados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para a formação do entendimento materializado pelo enunciado restou citado o acórdão proferido nos autos da Apelação Cível nº 1017881-36.2018.8.26.0068, assim ementado: 

Ação Regressiva. Contrato de transporte rodoviário de carga. Preliminares afastadas. Reconhecimento da legitimidade passiva da transportadora. Possibilidade de denunciação da lide. Questão anteriormente analisada em sede de Agravo de instrumento. Determinação do prosseguimento do transporte em desacordo com o Plano de Gerenciamento de Risco. Agravamento do risco do contrato de transporte e assunção, pela transportadora, do risco do roubo da carga. Ausência de excludente de responsabilidade. Juros de mora computados a partir da citação, cuidando-se responsabilidade civil contratual. Recursos a que se nega provimento. 

Trata-se de caso em que restaram analisadas as duas questões de direito aqui abordadas, qual seja a responsabilidade da transportadora na hipótese de roubo e a incidência efetiva e aplicação da cláusula DDR.  

Com relação ao roubo, verifica-se que o acórdão em questão opinou pela responsabilidade da transportadora, justamente em razão das circunstâncias fáticas, já que se considerou que no caso em apreço o motorista prosseguiu viagem em veículo que apresentava problemas, motivo pelo qual se realizou paradas sem prestar informações ao gerenciamento de risco e em uma das ocasiões se deu a ação delituosa, consumando-se o roubo da carga.  

Conclusão 

A conclusão, portanto, foi de que o agravamento do risco se mostrou patente na hipótese, gerando também como consequência o afastamento da cláusula de dispensa de regresso.  

Em suma, a solução adotada pelo TJSP se mostra razoável, já que prestigia efetivamente a análise do caso, mas também importa em solução valiosa às companhias seguradoras, que muitas vezes viam a pretensão de ressarcimento esvaziada automaticamente diante de cláusula DDR pactuada. 

Autora: Ana Gabriela Malheiros de Oliveira

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