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O incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Visões gerais do instituto conforme o CPC/2015
Sabe-se que no atual sistema processual civil, a regra que vigora é a da responsabilidade patrimonial, isto é, quem responde pelas dívidas contraídas é o devedor com seu patrimônio, nos termos do art. 789 do CPC/2015. Apenas em casos excepcionais é possível atingir o patrimônio de terceiros para satisfação do débito, como no caso da desconsideração da personalidade jurídica, desde que preenchidos os requisitos previstos na legislação (art. 50 do CC e art. 133 do CPC), com o fim de satisfazer os direitos dos credores.
Nesse contexto, merece destaque o princípio da autonomia patrimonial, o qual disciplina que o patrimônio pessoal do devedor é preservado – ainda que ocorra o fracasso empresarial da pessoa jurídica da qual é sócio.
A personalidade jurídica constitui a forma utilizada para garantir a limitação da responsabilidade civil dos sócios e administradores, bem como de sua autonomia patrimonial, garantindo a distinção entre elas. Sobre o tema, a ministra Nancy Andrighi, ao relatar o Recurso Especial nº 1.647.362, assim aclarou:
“(a personalidade jurídica) Trata-se de instituto jurídico cujo objetivo é incentivar o empreendedorismo por meio da limitação de seus riscos, o que ocorre por meio da previsão de autonomia do patrimônio da pessoa jurídica em relação ao dos seus sócios. Essa separação patrimonial impede que, na hipótese de insucesso nos investimentos, a responsabilidade pelas dívidas da empresa seja atribuída de forma imediata e pessoal aos sócios, favorecendo a exploração da atividade empresarial.”
Diante disso, pode-se afirmar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) surge como uma modalidade de intervenção de terceiro, na qual o requerente provoca o seu ingresso no processo judicial com o intuito de dirigir a responsabilidade patrimonial, rompendo, assim, a autonomiada pessoa jurídica. O IDPJ já estava previsto no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, mas foi apenas com o CPC atual que surgiu a previsão acerca do procedimento para se obter a desconsideração da personalidade jurídica.
O IDPJ tem como finalidade a imputação da responsabilidade à pessoa diversa daquela que contraiu o débito, pois, a princípio, imputa-se a terceiro à relação jurídica obrigacional, bem como responsabilização patrimonial diante do inadimplemento.
Segundo o doutrinador Rubens Requião, a teoria do referido incidente surgiu como uma forma de garantir a manutenção do instituto da personalidade jurídica, reprimindo-se as fraudes decorrentes do abuso de direito praticada pelos sócios. Portanto, não se vislumbra a anulação da personalidade jurídica com sua extinção, mas, sim, no caso concreto, a suspensão temporária dos seus efeitos para que o patrimônio do sócio possa ser atingido. Em outras palavras, temos que o IDPJ opera-se apenas no plano da eficácia, e não da existência e validade.
Questões controversas acerca do IDPJ
- Ausência de previsão legal acerca das matérias de defesa do sócio
No tocante à defesa do sócio, conquanto seja tema indiscutível sua possibilidade e necessidade, a lei deixa de especificar quais matérias poderiam ser suscitadas pelo terceiro (sócio ou responsável). Nessa esteira, indaga-se: seria possível entrar no mérito da ação principal, contestando o débito e/ou validade do processo, ou o requerido está restrito a rebater os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica?
Quando o IDPJ é requerido na petição inicial, torna-se fácil concluir que toda a matéria de mérito deverá ser atacada, pois a forma de defesa do sócio, que é parte na ação, é a contestação. Por outro lado, quando o IDPJ é requerido de forma incidental, a discussão na doutrina é aguçada.
Para alguns doutrinadores, haveria uma limitação na matéria de defesa, considerando-se que o processo principal já teve amplo contraditório e produção de provas e, na hipótese de admissão do IDPJ, o terceiro que entrar como parte processual poderá abordar os demais pontos pelos respectivos meios de defesa (a saber: impugnação, contestação, embargos do devedor etc.).
Contudo, parece-nos que o entendimento mais correto, em consonância com o CPC, é de que, se a intenção do legislador foi prever o incidente garantindo a ampla defesa, não deve haver limitação da matéria desta pelo terceiro, visando, assim, a um julgamento de mérito justo.
Se entendemos que a decisão interlocutória que resolve o IDPJ é de mérito e, portanto, faz coisa julgada, a ideia é evitar a preclusão das matérias através da discussão ampla e total, afinal, o terceiro, se admitido como parte no processo, vai sofrer as consequências da execução de um título executivo cuja participação no processo de conhecimento não ocorreu.
Além disso, o art. 502 do CPC é expresso em dispor que a coisa julgada não está restrita à sentença, mas sim à decisão de mérito. Por conseguinte, o terceiro que será diretamente atingido pela decisão que desconsiderar a personalidade jurídica tem efetivo interesse em não ser prejudicado pela autoridade da coisa julgada, sendo possível ampliar as matérias de defesa, ao invés de ficar restrito às questões relativas à sua responsabilidade.
Portanto, conclui-se que é evidente que o CPC atual estabeleceu o procedimento para a aplicação prática do instituto do IDPJ, visando assegurar o contraditório e a ampla defesa em prol do julgamento de mérito objetivo e justo e, portanto, a manifestação do terceiro não poderá sofrer restrições, até porque esse direito fundamental não se encerra na apresentação de defesa, cabendo também ao requerido produzir provas, conforme parte final do art. 135 do Código.
Destaca-se: ninguém pode ser destituído de seu patrimônio sem o prévio e devido processo legal.
- Transporte “in utilibus” da coisa julgada
Sabe-se que a decisão que resolve o IDPJ é de natureza interlocutória, nos termos do artigo 136, CPC, em cognição exauriente.
A discussão da doutrina gira em torno da questão a seguir: se essa decisão interlocutória resolve o mérito ou não. Parte da doutrina que entende que não resolve o mérito baseia-se no argumento de que o próprio CPC trata a matéria como “intervenção de terceiros”, portanto, é relativa à legitimidade das partes.
Por outro lado, para a parte que entende que resolve, ainda que o mérito seja específico em relação ao IDPJ, conclui-se que há formação de coisa julgada
Nesse contexto, a lei abre espaço à interpretação de que a referida coisa julgada pode beneficiar, mas não prejudicar terceiro que não participou do processo com defesa e produção de provas, conforme art. 506 do CPC que assim dispõe:
“Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.”
Em relação a terceiros, a regra é que não se admite que qualquer pessoa estranha ao processo no qual foi formada a coisa julgada seja prejudicada por ela. Além disso, não se admite que a decisão admitindo o IDPJ seja usada em outros processos, pois entende-se que esta fica restrita ao caso concreto.
É necessário que a conduta do sócio seja analisada caso a caso, já que a origem do direito material é distinta em cada processo, com possibilidade de contraditório e produção de provas, ainda que, do ponto de vista processual, a utilização da decisão em outros processos aparente prestigiar o princípio da celeridade e efetividade processual. No IDPJ, parece-nos que os princípios de contraditório e ampla defesa devem se sobressair àqueles dois princípios.
O transporte “in utilibus” da coisa julgada não se sustenta constitucional e formalmente no IDPJ, eis que o ato fraudulento que pode gerar a responsabilidade patrimonial do sócio se altera caso a caso e inexiste contraditório específico a ser exercício pelo sócio. Portanto, não há como se admitir que a coisa julgada formada no julgamento de um incidente seja transportada.
Conclui-se, então, que há um limite subjetivo da coisa julgada formada no incidente de desconsideração da personalidade jurídica em relação a terceiros estranhos ao processo no qual ela é formada, em prestígio aos princípios de contraditório e ampla defesa tão tutelados por esse instituto.
- Marco temporal para a configuração de fraude à execução
Na fraude à execução, o devedor, no intuito de se furtar ao cumprimento da obrigação, transfere seus bens a terceiros, frustrando a satisfação do crédito cobrado pelo autor da ação. Essa conduta fraudulenta, além de frustrar os interesses do credor, também frustra a atividade estatal e, por isso, pode ser considerada ato atentatório contra a dignidade da justiça.
O nome “fraude à execução” sugere como pressuposto a existência de processo de execução ou fase de cumprimento de sentença, mas para que isto ocorra basta que o réu tenha sido citado em processo judicial, haja ou não título executivo.
Na desconsideração da personalidade jurídica, a questão importante diz respeito ao marco temporal para a ocorrência da fraude à execução. O artigo 792, §3º, CPC, dispõe que:
“Art. 792: A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
§3º: Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.”
Em uma primeira leitura desse artigo, não restam dúvidas de que o marco temporal é o momento da citação da sociedade, mesmo que o sócio ainda não seja responsável pelas dívidas da sociedade.
A consequência dessa previsão são as medidas custosas e difíceis ao adquirente, uma vez que caberia a essa pessoa tomar todas as cautelas necessárias à verificação de eventuais processos em nome não só do alienante, mas também de eventuais pessoas jurídicas que o sócio faça parte.
Assim dizendo, pode ocorrer de sequer existir um processo contra o sócio alienante do bem, mas caberia ao adquirente a tarefa de descobrir de quais empresas essa pessoa integra a sociedade bem como verificar a existência de processos contra elas – atividade morosa e trabalhosa. Nesse entendimento, estaria se tutelando o interesse do exequente em detrimento do terceiro adquirente o qual se presume que esteja agindo de boa-fé.
Por essa razão, alguns autores, como o Humberto Theodoro Jr., entendem que o marco temporal correto para a configuração da fraude à execução seria a citação do sócio, no caso de desconsideração direta, ou da sociedade no caso de desconsideração inversa. Por outro lado, deve ser levado em consideração que, havendo processo judicial contra determinada sociedade, o sócio administrador terá ciência do débito previamente, imaginando que seu patrimônio possa ser atingido, o que poderia ocasionar a dissipação deste antes da citação para o IDPJ e prejudicar a execução.
Para o professor Eduardo Arruda Alvim, a ideia é que se compatibilize a disposição da lei com a boa-fé. Portanto, seria preciso aplicar a lei – ou seja, considerar o marco temporal a citação da sociedade –, apenas quando for minimamente possível que o terceiro adquirente tenha conhecimento da pendência da ação contra a sociedade, a fim de preservar a boa-fé, privilegiada em nosso ordenamento jurídico.
Anteriormente à vigência do CPC atual, diante da ausência de regulamentação sobre o procedimento, havia divergência na doutrina sobre o cabimento do IDPJ e o momento processual correto para o pedido. Atualmente, há um capítulo no código apenas para disciplinar o procedimento, que deve ser seguido não apenas em processos cíveis, mas também trabalhistas e falimentares, conforme enunciados nº 124 e nº 247, do Fórum Permanente de Processualistas Civis.
Conclui-se, então, que o CPC atual solucionou e pacificou muitos dos entendimentos que existiam no CPC anterior acerca do instituto, contudo, ainda há questões controversas na doutrina e jurisprudência sobre o tema que merecem especial atenção de todos os envolvidos no processo para que os princípios norteadores do processo civil sejam sempre preservados em busca de uma jurisdição justa.
Autoras: Camila Yumi Nagata e Giovanna Hoff Domingues